The following article is translated into Portuguese from the English original, written by Kevin Carson.
O artigo a seguir foi escrito por Kevin Carson e publicado em Fundação P2P, 8 de junho de 2009.
De acordo com Lewis Mumford, bem como com numerosos outros proponentes da indústria descentralizada como Pyotr Kropotkin e Ralph Borsodi, o principal motivo para a produção fabril de larga escala foi, originalmente, economizar cavalos-vapor. No tempo do vapor de água, todas as máquinas de uma fábrica estavam conexas por correias ao eixo cardã a partir de um único motor principal. A invenção do gerador elétrico e do motor elétrico, que tornou possível ajustar a escala de uma máquina à demanda e situá-la próxima do mercado, eliminou esse imperativo. Para Mumford, portanto, a energia elétrica foi a característica definidora dessa fase “neotécnica” enquanto distinta da mais antiga fase “paleotécnica” da energia a vapor e das grandes fábricas.
Michael Piore e Charles Sabel, escrevendo em A Segunda Divisória Industrial, argumentaram que era possível incorporar a energia elétrica à manufatura de duas maneiras. A primeira, e mais natural, era tirar proveito total de seu potencial descentralizador e incorporar máquinas elétricas de pequena escala e propósito geral na produção artesanal, num distrito industrial local. A outra era incorporar energia elétrica ao antigo sistema fabril paleotécnico. A segunda, o caminho tomado na maior parte das vezes, foi a base da indústria estadunidense de produção em massa.
A economia estadunidense seguiu pela segunda vereda em grande parte como resultado da intervenção do estado. Sem um sistema ferroviário centralizado, de alto volume – quase inteiramente criação do estado – e sem os custos de embarque artificialmente baixos dele resultantes, não teria havido um único mercado nacional. Só com a existência de um mercado nacional unificado, com custos artificialmente baixos de distribuição, tornou-se possível para as grandes firmas fabris atenderem a um único mercado nacional.
Sem essa intervenção, o sistema ferroviário estadunidense teria provavelmente evoluído como grande número de redes ferroviárias localmente orientadas, com as conexões regionais e nacionais que finalmente se desenvolveram surgindo mais tarde e tendo capacidade muito menor. Nesse ambiente, no curso natural das coisas, fabricantes locais teriam aparecido para servir os mercados locais, e energia elétrica teria sido integrada nessa indústria local. O estado natural das coisas, em suma, teria sido a segunda revolução industrial transformar a economia estadunidense em uma centena ou mais de economias locais conexas em rede no padrão de Emilia-Romagna.
Isso porém não aconteceu. O estado centralizado, em aliança com os antigos interesses paleotécnicos, cooptou a revolução neotécnica por meio de maciço exercício de cima para baixo de engenharia social.
Mumford chamou a dispersão do potencial neotécnico, e sua incorporação ao arcabouço paleotécnico, de “pseudomorfo cultural.” A neotécnica não havia “desalojado o regime antigo” com “rapidez e decisão,” e não havia ainda “desenvolvido sua forma própria de organização.”As citações a seguir são de Técnica e Civilização.
Surgindo a partir da ordem paleotécnica, as instituições neotécnicas nada obstante em muitos casos fizeram concessões a ela, deram espaço a ela, perderam sua identidade em razão do peso de interesses próprios que continuaram a dar suporte aos instrumentos obsoletos e aos objetivos antissociais da era industrial média.
Os ideais paleotécnicos ainda dominam em grande parte a indústria e a política do Mundo Ocidental…. Na medida em que a indústria neotécnica tem fracassado em transformar o complexo hulha-e-ferro, na medida em que ela tem fracassado em assegurar fundamento adequado para sua tecnologia mais humana na comunidade como um todo, na medida em que ela tem emprestado seus poderes intensificados para o minerador, o financista, o militarista, as possibilidades de perturbação e caos têm aumentado….
As novas máquinas seguiram, não seu próprio padrão, e sim o padrão assentado por estruturas econômicas e técnicas anteriores….
O fato é que nas grandes áreas industriais da Europa Ocidental e da América…, a fase paleotécnica ainda está intacta e todas as suas características essenciais são dominantes, embora muitas das máquinas que ela use sejam neotécnicas….
Temos usado nossas novas máquinas e energias apenas para promover processos que haviam começado sob os auspícios da empresa capitalista e militar: não as temos utilizado ainda para tomar posse dessas formas de empresa e submetê-las a propósitos mais essenciais e humanos….
Não apenas as formas mais antigas de técnica serviram para restringir o desenvolvimento da economia neotécnica: mas as novas invenções e esquemas têm sido amiúde usados para manter, renovar, e estabilizar a estrutura da antiga ordem social….
O atual pseudomorfo é, social e tecnicamente, de péssima qualidade. Tem apenas uma fração da eficiência que a civilização neotécnica como um todo pode possuir, desde que finalmente produza suas próprias formas institucionais e controles e instruções e padrões. No presente, em vez de encontrar essas formas, temos aplicado nossa perícia e inventividade de maneira a dar novo alento a muitas das instituições capitalistas e militaristas do período mais antigo. Propósitos paleotécnicos com meios neotécnicos: essa é a característica mais óbvia da presente ordem….
Metamorfose semelhante é possível na cultura: novas forças, atividades, instituições, em vez de se cristalizarem independentemente em suas próprias formas apropriadas, podem insinuar-se na estrutura de uma civilização já existente…. Como civilização, ainda não entramos na fase neotécnica…. [E]stamos ainda vivendo, nas palavras de Matthew Arnold, entre dois mundos, um morto, o outro sem energia para nascer.
Em decorrência, a indústria estadunidense foi desviada para um beco sem saída de produção em massa sloanista durante um século. Nas palavras de Sabel e Piore, “levou quase um século … para se descobrir como organizar uma economia de modo a ela colher os benefícios da nova tecnologia.”
O primeiro estágio do pseudomorfo envolveu a integração da energia elétrica num arcabouço fabril paleotécnico: o uso de maquinário enormemente dispendioso, específico de produto, de onde se seguiu a necessidade de operação do maquinário em capacidade plena para minimização de custos unitários; tornou-se consequentemente indispensável divorciar a produção da demanda, manter as máquinas em funcionamento, e preocupar-se com a venda da produção mais tarde. Disso, por sua vez, seguiu-se a necessidade de a corporação exercer controle sobre a sociedade em geral, a fim de garantir que a produção fosse consumida e nenhuma superabundância de bens excedentes impedisse que as engrenagens continuassem girando. A conclusão lógica do sistema foi obsolescência planejada, diferenciação de marcas, marketing de alta pressão, e todo o resto. E montanhas de lixo: montanhas de bens reparáveis nos aterros sanitários, montanhas de estoque nas fábricas, montanhas de bens economicamente inúteis produzidos para o complexo industrial-militar cuja função precípua era destruir riqueza e impedi-la de amontoar-se rápido demais.
Quando esse estágio tornou-se insustentável, o pseudomorfo entrou num segundo estágio, mais fraco, que Mumford não conseguira prever. A crise de insustentabilidade golpeou as economias industriais do Ocidente em torno de 1970, depois de ter sido postergada durante uma geração pelo Segunda Guerra Mundial. A Segunda Guerra Mundial havia resolvido temporariamente as tendências crônicas de superinvestimento e subconsumo, ao explodir a maior parte das fábricas e equipamentos do mundo fora dos Estados Unidos. As tendências de crise, porém, voltaram nos anos 1970, juntamente com a avó da crise atual do Pico do Petróleo.
Nesse segundo estágio – que teve como pioneiros Taichi Ohno com a produção enxuta da Toyota e as firmas de fabricação flexível em distritos industriais tais como Emilia-Romagna – a economia corporativa começou a incorporar tecnologias e formas de organizar a produçãocapazes de satisfazer as expectativas da visão neotécnica original.
De acordo com Piore e Sabel, a mudança para a produção enxuta nos Estados Unidos a partir dos anos 1980 foi em grande parte reação ao crescente ambiente de insegurança macroeconômica que prevaleceu depois do recrudescimento da crise de superacumulação, e dos choques do petróleo dos anos 1970. A indústria de produção em massa é extremamente friável — isto é, “não se ajusta facilmente a grandes mudanças em seu ambiente.” A questão não é apenas como a indústria reagirá a esgotamento de recursos, mas como reagirá aos tipos de preços em flutuação descontrolada e a suprimentos erráticos.
Conversamente, entretanto, o sistema prevalente em distritos industriais tais como Emilia-Romagna é chamado de “fabricação flexível” por uma razão. Ele é capaz de realocar bens de capital dedicados e de mudar relacionamentos contratuais, e de fazê-lo bastante rapidamente, em reação a mudanças súbitas no ambiente. Embora a produção artesanal tenha sempre tendido a expandir-se em relação à indústria de produção em massa durante declínios econômicos, foi só na prolongada estagnação dos anos 1970 e 1980 que começou a escapar de sua condição periférica, de tal modo que técnicas de fabricação enxuta vieram a definir o sistema industrial.
Da segunda revolução industrial no final do século dezenove até o presente, declínios econômicos periodicamente alargaram a periferia artesanal em relação ao cerne de produção em massa — mas sem alterar seu relacionamento. Desacelerações de crescimento lançaram dúvidas sobre expansão subsequente; num ambiente incerto, firmas ou adiam investimentos de produção em massa ou então mudam para técnicas de produção artesanal, que permitem rápida entrada em que mercados se abram. O exemplo mais patente é o deslocamento rumo a uma economia industrial de subsistência, ou industrial de reparos: ao os mercados estagnarem, o intervalo entre substituições de bens vendidos aumenta. Esse intervalo aumentado aumenta a demanda por peças avulsas e serviços de manutenção, a qual só é suprida por firmas organizadas de forma flexível, usando equipamento de propósito geral. O artífice dos anos 1930 com um kit de ferramentas indo de porta em porta em busca de biscates simboliza o decréscimo da divisão do trabalho que acompanha retrocesso econômico; a volta a métodos artesanais.
O que porém é distintivo na crise atual é que o deslocamento rumo a maior flexibilidade está provocando sofisticação tecnológica — em vez de retorno a técnicas simples. Ao as firmas se defrontarem com a necessidade de reprojetar produtos e métodos para fazerem face a custos ascendentes e a competição crescente, encontraram novos meios de cortar custos da produção personalizada…. Em suma, a obra de artífice tem desafiado a produção em massa em termos de paradigma.
No caso das pequenas firmas metalúrgicas japonesas, das minissiderúrgicas estadunidenses e da indústria têxtil pratesa, o mesmo padrão prevaleceu. Pequenos empreiteiros de grandes firmas fabris “sentiram a crescente volatilidade dos mercados de seus clientes; em reação, adotaram técnicas que reduzem o tempo e o dinheiro envolvidos em mudar de produto para produto, e isso também aumentou a sofisticação e a qualidade da produção.” Na Itália e no Japão os subempreiteiros se federaram para criar redes de fabricação flexível e reduzir sua dependência de qualquer escoadouro para seus produtos.
Contudo, embora a economia corporativa tenha retornado ao potencial original das tecnologias de produção neotécnica, fê-lo dentro de um arcabouço institucional paleotécnico, no qual os processos de fabricação enxuta e flexível continuaram a ser governados por enormes corporações que retiveram o controle sobre as finanças, o marketing, e a propriedade intelectual.
E até a tecnologia de produção enxuta fracassou em realizar seu potencial pleno numa economia ainda baseada num modelo de distribuição de “armazéns sobre rodas” (ou de navios porta-contentores). O verdadeiro potencial da produção enxuta é eliminar completamente o estoque mediante ajuste da produção à demanda. Não importa o quanto uma fábrica é enxuta internamente, se o estoque for apenas varrido para debaixo do tapete – ou para dentro das fábricas e de caminhões, em vez disso – com uma cadeia de distribuição de mil milhas. A verdadeira produção enxuta só será conseguida numa economia completamente relocalizada, na qual não apenas o maquinário seja ajustado para escala compatível com o fluxo de produção dentro da fábrica, mas a própria fábrica tenha sua escala ajustada para tão próxima quanto possível da demanda local e fique situada tão perto quanto possível do ponto de consumo.
A boa notícia é que o segundo estágio do pseudomorfo é exatamente tão insustentável quanto o primeiro. Na medida em que as antigas instituições corporativas dependem cada vez mais de “propriedade intelectual” para captar valor de um processo direto de produção que elas não mais controlam, tornam-se cada vez mais vulneráveis. À medida que o processo de produção torna-se redeado, e controlado quase inteiramente pelos subempreiteiros, a corporação torna-se apenas outro nó potencialmente redundante a ser tratado como obstrução e contornado. E como Eric Hunting já argumentou no passado, os projetos de produto cada vez mais modulares que o capitalismo corporativo empreendeu para seus próprios propósitos constituem apenas mais outra maneira pela qual o sistema está cavando o próprio túmulo.
O “capitalismo cognitivo” só é viável na medida em que patentes e copyrights possam ser impostos, e as pessoas estejam dispostas a respeitar sua legitimidade. O modelo de negócios inteiro, não apenas o dos dinossauros corporativos das indústrias de entretenimento e de software, mas também o dos fabricantes físicos cujos preços de produto consistem em sua maioria de rentismo embutido em “propriedade intelectual” em vez de decorrentes de trabalho real e de custos materiais de produção, entrarão em colapso tão logo aqueles engajados na produção real vejam aqueles como os comensais inúteis que são.
O retorno das antigas crises de superacumulação e subconsumo com o mais recente desastre econômico, a crescente insustentabilidade de cadeias de suprimento globais ou mesmo continentais numa época de Pico do Petróleo, a impossibilidade de captar valor da “propriedade intelectual” num tempo de criptografia forte e bittorrent, e acima de tudo a implosão dos custos de produção e do overhead na faixa inferior de produtos a partir de melhorias mínimas em tecnologia de máquinas ferramentas miniaturizadas e agregação comunitária de capitais de pequena escala significa termos bom motivo para esperar “tempos interessantes.”
Artigo original afixado por Kevin Carson em 1o de dezembro de 2012.
Traduzido do inglês por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme.