Quando o Facebook Proíbe Anarquistas Pacíficos mas Isenta a Violência do Estado
O artigo a seguir foi traduzido para o português por Flávio Gonçalves, a partir do original em inglês. Peça escrita em co-autoria com Nathan Goodman.

“O Estado apoda a sua violência como sendo lei, e a do indivíduo como sendo crime.” – Max Stirner

A 19 de Agosto, 2020, o Facebook finalmente cedeu sob imensa pressão social e política e anunciou novas regras para a moderação de conteúdos que se centram em “organizações e indivíduos violentos”, especificamente “grupos de anarquistas do mundo real que apoiam actos violentos no decorrer de protestos, organizações milicianas sediadas nos EUA [o que aparentemente inclui a “antifa”] e QAnon”. Estas regras de limpeza surgem após meses de campanhas difusoras de medos por parte de políticos dos EUA com o intuito de inculcar a culpa das campanhas populares mais recentes contra a intratável violência policial a “agitadores externos” e a “anarquistas profissionais“.

No mesmo dia em que o Facebook anunciou as suas novas políticas, nós e dois outros colegas nossos do Centro Para uma Sociedade Sem Estado tivemos as nossas contas pessoais no Facebook desabilitadas por tempo indeterminado. Juntos tínhamos sido administradores de uma página no Facebook que articula uma defesa de esquerda ao direito ao porte de arma apodada de “Esquerda Pela Auto-Defesa e Liberdade no Porte de Arma”. O Facebook removeu essa página no mesmo dia em que anunciou a sua nova política e desativou as nossas contas. Infelizmente, nenhum de nós recebeu qualquer aviso prévio por parte do Facebook quanto aos motivos para essas acções, pelo que a causa requer aqui uma certa dose de conjectura.

A “Esquerda Pela Auto-Defesa e Liberdade no Porte de Arma” foi criada a 5 de Novembro de 2014, com o intuito de realçar problemáticas do controlo de armamento que normalmente não são valorizadas no seio do debate político do sistema. As leis de controlo de armas são aplicadas pelo sistema de justiça criminal americano, com todas as suas discriminações e desigualdades estruturais. O resultado sendo que os afro-americanos são desproporcionalmente mais propensos a serem enviados para a prisão devido ao controlo de armas. As propostas de controlo de armas ditas de “senso comum” como verificação de antecedentes e propostas para utilizar a “Lista de Restrição de Voos” para vedar o acesso a armas, também restringe desproporcionalmente as pessoas marginalizadas. Como defendem abolicionistas das prisões como Dean Spade, “quando falamos sobre violência armada e ignoramos a realidade da violência estatal, normalmente tal resulta em propostas que marginalizam e criminalizam ainda mais as pessoas de cor, os pobres, os deficientes, os imigrantes e os jovens.”

Contudo estes problemas com o controlo de armas não fazem parte dos debates do sistema. Por um lado, vemos comentadores do centro-esquerda que professam a sua preocupação com pessoas marginalizadas, mas apoiam o controlo de armas. Por outro, vemos comentadores de direita que afirmam apoiar o direito ao porte de arma, mas que apoiam formas de violência estatal que minam o direito ao porte de arma e o direito à auto-defesa, como por exemplo a guerra contra as drogas, na qual todas as rusgas sem qualquer aviso são na realidade uma invasão do domicílio que contém o risco de transformar qualquer dono de casa que defenda o seu lar quer numa vítima de homicídio, quer num potencial homicida. Tal é ilustrado no caso de Matthew David Stewart. Um veterano com PSPT, Mathew disparou contra a polícia quando esta invadiu a sua casa numa rusga durante a madrugada. O intuito da rusga era encontrar marijuana, que este plantava para auto-medicar a sua PSPT. A polícia e os procuradores públicos tentaram difamar Matthew na comunicação social bem como condená-lo por homicídio agravado. Antes que fosse proferido qualquer veredicto, faleceu na cadeia de um aparente suicídio. O único crime que lhe custou a vida foi plantar marijuana e defender a sua casa. O direito ao porte de arma e à auto-defesa não estão assegurados num mundo onde tal coisa acontece.

Nos primórdios da página, tentamos realçar os casos de auto-defesa que não incluíam quaisquer armas de fogo. Por exemplo, exigimos a liberdade de CeCe McDonald, uma mulher trans de cor que fôra encarcerada por se defender de um crime de ódio. Apoiamos também o trabalho do Projecto de Justiça e Clemência das Mulheres do Michigan, que tem por objetivo libertar mulheres que foram presas por se defenderem da violência dos seus companheiros. O que estes casos ilustram tão tragicamente é que dar mais poder ao Estado prisão é muitas vezes extremamente contra-produtivo para os objectivos das feministas que tentam libertar as mulheres de uma violência que se perpetua.

Começamos a publicar com um sentido de urgência renovado no rescaldo do homicídio policial de Philando Castile, um homem do Minnesota assassinado à frente da sua namorada e da sua filha por portar legalmente uma arma oculta. Castile seguiu à linha o treino que lhe fora dado para obter a licença de porte de arma oculta no Minnesota. Mas por ser negro, a lei viu as coisas de outra maneira, e o agente Jeronimo Yanez atingiu-o várias vezes meros segundos após o seu encontro inicial. Num caso de notória violência estatal, a instituição supremacista branca que é a polícia dos EUA achou adequado executar sumariamente um indivíduo por exercer legalmente o seu direito à auto-defesa armada. O silêncio ensurdecedor daqueles que defendem o porte de arma à direita do centro foi ultrajante e assim permanece, principalmente à luz da rusga sem aviso que assassinou Breonna Taylor e o (agora abandonado) processo contra o seu namorado por ter disparado contra os invasores mascarados vestidos com roupas civis que tinham acabado de assassinar a sua namorada.

Como administradores a maior parte do tempo limitamos-nos a partilhar memes e o ocasional artigo a analisar o Clube de Tiro John Brown ou o grupo Revolta Saloia. Realçamos que grupos como os Panteras Negras foram vítimas do controlo de armas racista sob Reagan. Ilustramos também como as figuras fundacionais do pensamento de esquerda defenderam o direito ao porte de arma como parte integral da libertação da classe trabalhadora. O próprio Marx defendia, “sob nenhum pretexto devem as armas e as munições ser entregues; temos que frustrar qualquer tentativa de desarmar os trabalhadores, pela força se necessário.”

Tal pareceu ser suficiente para removerem a nossa página e desactivar por tempo indefinido as nossas contas pessoais sem qualquer aviso prévio e sem qualquer indicação de estarmos a violar os Termos de Serviço. Não fomos os únicos a ser erradamente abrangidos por este assalto mais recente do Facebook. Entre as outras vítimas desta nova política de conteúdos encontram-se os órgãos de comunicação social antifascista ItsGoingDown e CrimeThInc.

Contudo, o Facebook teve a presciência em interesse próprio de codificar as isenções à violência do Estado nas suas regras de conteúdos com salvaguardas muito convenientes aos Estados e aos agentes do Estado: “…qualquer interveniente ou grupo não estatal que possa ser classificado como indivíduo ou organização perigosa será banido da nossa plataforma.”

Portanto o que se segue são aparentemente indícios de perigo perante os olhos do Facebook:

  • Mencionar o historial racista do controlo de armas
  • Defender que as comunidades marginalizadas como as mulheres trans ou os jovens de cor devem pegar em armas para se defenderem do fascismo horripilante
  • Apoiar os esforços para libertar mulheres encarceradas sem qualquer justificação pelo Estado prisão
  • Defender o direito de porte de arma das pessoas negras

Contudo, o que se segue aparentemente não constitui quaisquer indícios de perigo aos olhos do Facebook:

Estas regras novas são uma perturbadora escalada no esforço coordenado para silenciar e desmantelar quem se organiza de modo não centralizado contra o autoritarismo crescente. É propositadamente vaga o suficiente para incluir tanto grupos de esquerda que defendem o porte de arma como teóricos da conspiração de extrema-direita como os QAnon ou bandos de neo-nazis violentos como os Proud Boys. A nova política do Facebook revela a falência moral do “dois ladismos”. Tratar aqueles que se estão a organizar contra o supremacismo branco como sendo moralmente equivalentes aos supremacistas brancos é uma parca compreensão do discurso público, na melhor das hipóteses, e uma estratégia eficaz para salvaguardar o status quo supremacista branco, na pior das hipóteses.

Enquanto os defensores de esquerda do porte de arma estavam a ser silenciados sob os auspícios de se combater a desinformação dos QAnon e das milícias de direita, o presidente dos Estados Unidos exaltava as virtudes dos aderentes ao QAnon na Sala de Imprensa da Casa Branca. Pior que tudo isso, o presidente tem a plena liberdade de poder continuar a utilizar o Facebook para promover os sectores mais brutais da violência estatal, tais como a deportação, o encarceramento e os bombardeamentos.

Esta mudança na política de conteúdos retrata um potencial futuro no qual os gigantes das redes sociais se vejam compelidos a agir como moderadores de conteúdos nas suas gigantescas plataformas. Esse futuro torna-se ainda mais provável pelos esforços mais recentes por parte do congresso com a tentativa de erosão da Secção 239 da Lei da Decência nas Comunicações de 1996, que protege editores como o Facebook de serem punidos pelos conteúdos produzidos pelos utilizadores das suas páginas. Estas empresas irão naturalmente virar-se para o lado da cautela, o que irá levar a políticas semelhantes que irão omitir do discurso público vozes importantes. É improvável que o afastamento de organizações antifascistas por parte do Facebook obtenha a mesma atenção que o de comentadores “cancelados” pelas opiniões que partilharam nos seus programas de comentário ou regularmente em colunas de opinião. Apelos a um policiamento cada vez maior do discurso acabarão inevitavelmente por silenciar aqueles que tenham menos recursos e aqueles que, por serem considerados como politicamente inconvenientes, não vale a pena defender.

Se dermos uma vista de olhos aos cabeçalhos ficamos com ideia de que o Facebook só está a afectar grupos ligados ao QAnon. Está a fazer muito mais que isso. Anarquistas, anti-autoritários, anti-fascistas e anti-racistas estão também a bater-se com uma desactivação abrupta sem qualquer aviso ou explicação. Enquanto o Facebook justifica estas novas expulsões com o intuito de travar “a violência”, em simultâneo deixa que defensores da violência estatal utilizem a sua plataforma sem quaisquer impedimentos.

Mark Zuckerberg concorda com Max Stirner em como “o Estado considera a sua violência como sendo lei, e a violência do indivíduo como sendo crime”, mas enquanto que Stirner via em tal uma razão para condenar o Estado e defender o indivíduo, Zuckerberg pelo contrário vê-o como razão para condenar o indivíduo e defender o Estado. Quaisquer que sejam as políticas de conteúdos criadas pelo Facebook, não podemos deixar que qualquer gigante das redes sociais nos detenha de um projecto cada vez mais urgente para revelar a violência estatal como o que realmente é.

Só conseguirão ocultar a violência do Estado enquanto os deixarmos.

E estão numa clara desvantagem.

Citações a este artigo:

Anarchy and Democracy
Fighting Fascism
Markets Not Capitalism
The Anatomy of Escape
Organization Theory