Morro da Rocinha no Rio de Janeiro (Foto: Sean Fitzgerald @ Flickr)
“Um país chamado favela” é um livro surpreendentemente bom sobre a favela brasileira, de autoria de Renato Meirelles e Celso Athayde. Sem ter visto nenhuma recomendação a respeito na mídia ou na internet, me deparei com ele em uma pequena livraria, tendo lido em uma única sentada. A abordagem é acadêmica mas tem linguagem acessível, finalmente mostrando o morador da comunidade como um ser humano, nem um “problema” a ser resolvido nem uma “vítima” a ser salva.
O livro é resultado de uma investigação em 63 favelas de dez regiões metropolitanas do Brasil, ouvindo metodicamente duas mil pessoas. Pretendo aqui trazer um resumo da obra, que não exclui uma forte recomendação da leitura do livro na íntegra.
“Hoje vivemos uma dualidade. De um lado, encontramos os setores conservadores, que criticam fortemente a maneira como o Estado tem oferecido suporte a projetos de melhorias nas favelas. Como sempre, veem desperdício do que pagam na forma de impostos.
De outro lado, temos uma autonomeada ‘esquerda’ que vulgariza o acesso das camadas mais pobres ao universo do consumo. Para esses críticos, trata-se de alienação e paternalismo dominador. Não enxergam, por exemplo, utilidade do smartphone na mão do habitante da comunidade.” – Preto Zezé
No início do livro o comentário de Preto Zezé, presidente da Central Única das favelas, dá o tom à leitura que teremos a seguinte. Apesar de serem mencionados como atores no jogo, os protagonistas da mudança não são nem o governo nem ONGs externas à favela, mas empreendedores informais da própria comunidade: estes estão hoje conectados, informados e tomam decisões complexas assim como qualquer cidadão formal.
Consumo é riqueza
Estigmas da favela são quebrados um a um através de dados surpreendentes, como de que “no final de 2013, 50% dos domicílios de favelas contavam com conexão à internet… 85% [dos moradores] carregavam no bolso ou na bolsa um aparelho de telefone celular. Destes, 22% eram smartphones.”
A reação dos autores é, de forma alguma, negativa frente à nova realidade onde 47% dos moradores de favela possuem uma TV de tela plana. Pelo contrário: é um sinal da ascensão econômica e inclusão social.
Um dos personagens do mundo real citados é motorista e técnico em eletrônica Marivaldo. Morador do Complexo do Alemão, Marivaldo conta como gosta de assistir desde os jogos do Flamengo em alta definição como clássicos do jazz como Louis Armstrong e Duke Ellington, onde encontra as referências da sua negritude e os acordes que precisa tirar de seu saxofone. São vários exemplos mostrando os moradores em carne e osso.
Fica claro que o morador da comunidade sabe decidir o que é prioritário para ele mesmo, seja produtos de beleza, um tênis novo, um freezer, um Playstation, carne para o churrasco ou mate para a cuia – como no caso do senhor Claudio, morador de favela no morro Santa Tereza em Porto Alegre. Olhando em retrospecto, chega a ser triste a necessidade de informar ao leitor que o consumo da favela é um sinal de que seus moradores são como qualquer outro cidadão.
A interpretação do fenômeno dos “rolezinhos” também ilustra a percepção sobre o consumo, sinalizando o grave erro dos comerciantes ao estigmatizar os jovens que os organizavam como criminosos, e como a reputação é importante em uma comunidade onde os laços de confiança não estabelecidos por normas, mas por experiência e reputação:
“Nos rolezinhos e seus precursores, os jovens pretendem avaliar os demais e, ao mesmo tempo, mostrar o que são, como são e também suas posses. Ironicamente, os jovens do rolezinho vão para os shoppings embalados em roupas de marca, muitas vezes adquiridas lá mesmo. Fazem questão de exibir a camiseta, a calça, o boné ou o relógio, símbolos de ascensão social. Assim belos, bem vestidos e aparelhados, desfilam com certo orgulho. Procuram, mesmo que inconscientemente, reduzir o preconceito de que são vítimas.”
“Certamente, cometiam erro crasso aqueles comerciantes que consideravam apropriado barrar com spray de pimenta e cassetete esses ingressantes no mundo do consumo e do entretenimento. Faziam péssima aposta, queimando ótima oportunidade de conquistar uma nova e dinâmica clientela. Informações sobre condutas discriminatórias dessa natureza sobem o morro e se espalham celeremente pelo boca a boca. Essa é a mais efetiva forma de propaganda nas favelas. Ela serve para alavancar negócios ou destruir reputações.”
Empreendedor no morro do Cantagalo (Foto: Arquivo pessoal)
Empreendedorismo informal
“A favela é reduto da criatividade, da invenção, do empreendedorismo pleno, das artes, dos afetos e da solidariedade. E, se concordamos, a carência não é uma característica daqui.” – MV Bill
Um dos autores, Celso Athayde, é um desses empreendedores visionários a favela. Com uma infância difícil, vivendo de caridade e da venda de doces, tendo passado tempos morando em abrigos públicos e teve o irmão assassinado muito cedo. Cresceu indo de um emprego para outro, sempre envolvido com a comunidade, até se tornar o fundador da Central Única das Favelas (CUFA), a mais representativa entidade brasileira dedicada ao desenvolvimento das favelas. Em seguida montou a Favela Holding, um fundo com objetivo de atuar no empreendedorismo comunitário, fomentando negócios capazes de gerar emprego e renda. Um dos maiores projetos da Favela Holding é a criação de um shopping center no Complexo do Alemão. O projeto está orçado em 22 milhões de reais e deve abrigar 4 mil lojas gerando 6 mil empregos diretos e 4 mil empregos indiretos. Pelo menos 60% das lojas serão comandadas por moradores locais. Para o morador da favela, o shopping é uma salvação.
Segundo ele, “Em anos recentes, a favela tem se tornado um qualificado laboratório de incubação de novos negócios. Mas, por quê? O morador da comunidade, durante longo tempo obrigado a se virar sozinho, desenvolveu habilidades e vocações para a produção e o comércio. Aprende a driblar dificuldades, a lidar com o imponderável e fazer o bom marketing popular”. O “favelado” incorporou o empreendedorismo no seu DNA: na Rocinha, 10,1% dos moradores que trabalham são empreendedores, contra 8,1% no Alemão. Mais revelador ainda é o perfil desse empreendedor: segundo pesquisa do SEBRAE ele é mulher, tem mais de 40 anos e pouca intimidade com a internet.
“…uma arquitetura de simbioses e cooperações.” (Foto: Arquivo pessoal)
Arquitetura emergente
Um excelente estudo sobre a favela não deixa de comentar sobre o fascinante espaço construído e os processos emergentes de desenvolvimento na ausência de um plano regulador. O livro conta como a técnica construtiva evoluiu ao longo dos anos, não por determinações regulatórias, mas pelo desejo e pelo enriquecimento dos próprios moradores, trocando “o papelão e o zinco pelo tijolo e concreto.”
“Numa saudável anarquia, que exige bom senso e responsabilidade, as pessoas erguem suas moradias para a melhor convivência possível. Uma residência não pode alagar outra, tampouco tapar sua janelinha. A favela, na sabedoria solidária do povo, constrói acordos possíveis, ergue-se numa arquitetura de simbioses e cooperações.”
O estudo mostra também conhecimento das origens urbanas da favela no Rio de Janeiro, delatando a severidade dos programas estatais que historicamente agiram de forma a tentar eliminá-la. São descritos os conflitos sociais durante a Reforma Passos, no início do século 20, que segundo o historiador Maurício de Abreu foi um dos grandes catalisadores do início das favelas na então capital nacional. A visão higienista da época, tratando a favela como uma sujeira a ser “limpada”, perdura. Durante o governo do udenista Carlos Lacerda nos anos 60, mais de 42 mil pessoas foram removidas à força de 32 comunidades. Até hoje se ouve de alas conservadoras da sociedade brasileira de que é necessário “resolver” a favela a base de tanques e tratores.
Apenas no final do século 20 iniciam sinais de vitória da resistência, onde moradores se organizam e conquistam voz para defender seu direito de permanecer nas suas residências quando ocorrem situações semelhantes. A batalha pela comunidade pela própria comunidade continua, com esperança. 94% dos favelados se consideram felizes e 75% deles se vê na classe média em 2023, dez anos depois da data da pesquisa.