A identidade de gênero de grande parte da população não causa nenhum espanto durante a interação social, uma vez que corresponde ao seu sexo biológico. Mas não devemos esquecer a batalha dos transexuais pelo direito de autodeterminação de sua identidade de gênero.
Nem sempre a identidade de gênero de uma pessoa corresponde ao sexo biológico. Isso significa, por exemplo, que a pessoa se percebe enquanto mulher, mas seu sexo biológico é o masculino, e vice-versa.
A Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) define identidade de gênero da seguinte forma:
“[Uma] experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos e outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos. Identidade de gênero é a percepção que uma pessoa tem de si como sendo do gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independente de sexo biológico.”
Essa falta de correspondência entre identidade de gênero e sexo biológico não deve ser vista como uma doença, para a qual certo paternalismo médico recomendaria uma necessária retificação: trata-se de mais uma dimensão da diversidade sexual humana. Nem a homossexualidade, nem a transexualidade devem ser eliminadas da experiência humana; são expressões importantes da liberdade individual e da vida íntima.
Apesar do caráter íntimo e privado da identidade de gênero, o estado insiste em tornar isso uma questão pública através da carteira de identidade e das regulamentações do nome civil.
O nome civil no Brasil é aquele usado na carteira de identidade, conforme a certidão de nascimento individual. Sua alteração depende de procedimentos burocráticos, com base em rol restrito de justificativas.
Isso cria um problema para transexuais: seu nome civil, registrado na carteira de identidade, não reflete sua identidade de gênero. A consequência é o constrangimento de não poder controlar a própria expressão individual de gênero em suas interações sociais, uma vez que o nome civil registrado induz às pessoas a tratá-los conforme uma concepção de gênero com a qual não se identificam.
Por isso, no Brasil, um caminho encontrado tem sido o da regulação estadual do chamado “nome social”, ou seja, o nome pelo qual a pessoa prefere ser denominada em suas interações com as outras, e que permite ter maior controle sobre sua própria expressão de gênero. Assim, emite-se outra carteira (estadual, não federal) para a pessoa, onde conste seu nome social. É uma forma de resolver parcialmente um problema criado pela legislação federal.
Mas é preciso questionar seriamente se o estado tem legitimidade para reivindicar conhecimento sobre o sexo das pessoas. Esse poder do estado tem sido uma forma de privar os transexuais seus direitos civis, ao negar reconhecimento legal à sua condição diferenciada ou só concedê-lo sob a condição da realização de “cirurgias de mudança de sexo”, como se toda pessoa trans fosse obrigada a mudar seu corpo para expressar seu gênero.
Essa privação de direitos civis também ocorre porque o estado se arroga do direito de registrar todos os seus cidadãos com documentos de identificação obrigatórios, que servem ao propósito de aumentar a vigilância e controle sobre todos.
Como Erick Vasconcelos já comentou, o Brasil chega mesmo a um “totalitarismo da identificação”, onde se empilham os pretextos para justificar mais cadastros com mais informações, sem nenhuma contrapartida de instituições públicas mais transparentes.
Assim, uma importante bandeira libertária contra esses desenvolvimentos de um estado cada vez maior e com mais informações sobre as pessoas (obtidas por meio da coerção) é a da proteção da privacidade individual, que inclui o controle sobre a expressão pública da identidade de gênero por transexuais.
Então, o que o Brasil deveria fazer? Um bom passo seria imitar a Argentina, com sua Lei de Identidade de Gênero, que garante aos transexuais o direito à autodeterminação de seu gênero, inclusive possibilitando a retificação dos registros governamentais.
O Projeto de Lei João W. Nery, em tramitação no Congresso, de fato é inspirado na lei argentina e sua aprovação seria um passo interessante rumo à liberdade.
Esse é apenas um pequeno passo, porém. Trata apenas um dos sintomas da injustiça com os transexuais, mas não sua causa, e, por isso, a luta por mais liberdade para as minorias deve prosseguir com a exigência de completa privacidade para toda pessoa. O estado não deve poder forçar as pessoas a possuírem identidades obrigatórias.
A identificação obrigatória, de fato, torna mais fácil para o estado perseguir pessoas específicas que não possuem documentos. Os imigrantes, tanto no Brasil quanto nos EUA, têm grande possibilidade de deportação – e isso é ainda mais verdadeiro no caso de grupos minoritários discriminados como os transgênero.
Há, assim, uma preocupação interseccional aqui: a identificação obrigatória coloca pessoas que já são discriminadas no centro das atenções e, por isso, tanto pela liberdade de movimento quanto pela autodeterminação de gênero, devemos acabar com ela.
Logo, precisamos devolver aos transexuais a capacidade de determinar seu próprio gênero, e de não serem prejudicados nisso por qualquer barreira legal, uma vez que sua privacidade, intimidade e sexualidade não pertencem ao Estado, mas apenas a si mesmos. A carteira de identidade não pode ser um obstáculo à identidade de gênero.