As trocas mútuas são o objetivo do Centro em dois sentidos — nós defendemos uma sociedade baseada na cooperação pacífica e voluntária e buscamos estimular o entendimento através do diálogo contínuo. A série Mutual Exchange dará oportunidades para essa troca de ideias sobre questões que importam para os nossos leitores.
Um ensaio de abertura, deliberadamente provocador, será seguido por respostas de dentro e fora do C4SS. Contribuições e comentários dos leitores são muito bem vindos. A seguinte conversa começa com um artigo de Casey Given, “Qual o sentido de checar seus privilégios?“. Nathan Goodman, Kevin Carson, Casey Given e Cathy Reisenwitz prepararam uma série de artigos que desafiam, exploram e respondem aos temas apresentados no artigo original de Given. Ao longo da próxima semana, o C4SS publicará todas as suas respostas. A série final poderá ser acessada na categoria O sentido do privilégio.
* * *
Casey Given, em “Qual o sentido de checar seus privilégios?”, questiona a relevância ou utilidade do conceito de privilégio. Não que ele questione a existência da opressão racial e de gênero — pelo contrário. Ele simplesmente argumenta que a teoria de privilégios é irrelevante ou prejudica a luta contra a opressão. Segundo ele, a análise dos privilégios tem como efeito:
“[Varrer] a opressão para baixo do tapete, enfatizando a culpa branca em vez da ação política para acabar com a desigualdade sócio-econômica.
(…)
“Se a consciência dos próprios privilégios não é suficiente para acabar com a opressão, a própria estrutura analítica parece pouco mais que um exercício de alívio da culpa sentida pelos brancos. Qual seria seu benefício? A culpa branca não vai impedir que os policiais parem indivíduos negros. A culpa branca não vai ajudar uma família a escapar do ciclo de pobreza em que seus antepassados ficaram presos por séculos.”
Aqui Given mostra uma incompreensão sobre a teoria dos privilégios. Não se trata de sentir culpa. As pessoas nascem em grupos privilegiados sem ter qualquer influência sobre isso. Não há culpa. A teoria do privilégio é simplesmente uma teoria de conscientização, sobre a compreensão adequada da realidade em que precisamos trabalhar, como afirmou a ativista e médica Oakland Elle em uma série de tweets no dia 25 de maio:
“‘Por que devemos falar sobre gênero? Não podemos simplesmente nos dar bem?’
“Nós temos que falar sobre isso, temos que enfatizar esse assunto porque a sociedade criou uma hierarquia de gênero (entre outras). Essa hierarquia deve ser desmontada e não é possível acabar com ela adequadamente sem compreendê-la. Na minha opinião, isso começa escutando as pessoas que falam sobre suas próprias experiências de marginalização, sem silenciá-las.”
O privilégio é um conceito importante porque tem função explicativa e a percepção correta do mundo em que operamos é necessário para que essa operação seja efetiva. Aqueles que afirmam que não “veem raças” ou que “não veem cores” não são capazes de atuar adequadamente no mundo, da mesma forma que pessoas daltônicas, que de fato não conseguem distinguir cores, não conseguem saber a diferença entre luzes verdes e vermelhas no trânsito. Raça e gênero são fenômenos reais com efeitos materiais reais. Deixar de percebê-los não é algo a ser celebrado.
“Culpa” não é algo que entra na discussão. Se os membros de diferentes grupos recebem benefícios estruturais diferentes sem influência própria, aqueles que desejam navegar o mundo social real em que vivemos devem ter consciência desse fato. Fingir não vê-los é estupidez.
Given também sugere que é perverso tratar como “privilégios” vários dos itens incluídos nas várias listas de privilégios brancos ou masculinos — a maioria dos quais envolve uma sensação natural de boa recepção na maioria das situações sociais normais. Afinal, são coisas que os ativistas da justiça social devem considerar como o mínimo aceitável para todos.
“[A] a resposta a essas desigualdades não é oprimindo as pessoas que desfrutam de privilégios devidos, mas elevando aquelas que não os possuem através da ação política.”
Mas é exatamente isso. A questão não é considerar o bom tratamento e a normalidade como algo além daquilo que todas as pessoas devem experimentar em um mundo justo. É reconhecer que há uma diferença que cruza raças, gêneros e classes para que essa justiça seja realizada.
Essa questão se relaciona com outro erro a respeito das análises sobre privilégios: que tratam das melhoras em termos absolutos. Não é incomum, por exemplo, que uma pessoa branca negue que seja privilegiada porque, por exemplo, foi abusada na infância ou que sofreu com a desnutrição em uma casa sem esgoto encanado. O “privilégio branco” não significa que todas as pessoas brancas estão quantitativamente melhores, em termos absolutos, que todos os negros. Significa que ser branco, como tal, dá uma vantagem diferencial, tudo o mais constante. É claro que tudo o mais nunca é constante. Então haverá sempre alguns brancos empobrecidos e mal-tratados, que podem estar em situação pior em termos absolutos que negros de classe média-alta. O ponto é que, quando um branco e um negro estão em situação idêntica em todas as outras facetas da vida a não ser em sua raça, a pessoa branca estará melhor que a negra que enfrentar as mesmas situações.
Meus comentários a respeito da relevância dos privilégios para compreender o mundo em que operamos e na luta pela justiça social não são observações teóricas gerais. O conceito de privilégio tem aplicações muito reais e concretas na luta pela justiça.
Você pode ter percebido as defesas reiteradas de Given de “reformas políticas”. Aqui, no Centro por uma Sociedade Sem Estado, não é necessário dizer que não somos tão empolgados com reformas políticas. Por assim dizer, nós vemos o trabalho junto ao estado para tornar o mundo melhor através de ações legislativas como dar descarga em nossos esforços. O estado é essencialmente opressivo. Se enfraquece uma das formas de opressão, ele faz com que outras formas funcionem mais eficientemente. O estado será sempre o comitê executivo da classe dominante.
O estado pode até passar novas leis, sob pressão de feministas de classe média-alta, como Sheryl Sandberg e Marissa Mayer, e ativistas anti-racistas profissionais de classe média-alta, “para fazer com que as reuniões e mesas de diretores pareçam com o nosso país”. Porém, fazê-lo só fortalece o sistema de opressão de classes, diminuindo as divisões de raça e gênero dentro da classe dominante.
Alguns anos atrás, no livro Black in America, Soledad O’Brien citava a frase do reverendo Martin Luther King Jr. “Eu tenho um sonho” e então afirmava que a evidência da realização daquele sonho é que alguns negros “são secretários de estado. Alguns são CEOs”. Meu sonho é ver o último secretário de estado estrangulado com as entranhas do último CEO.
Em vez de fazer lobby para que o estado inicie reformas, nós, do C4SS, preferimos fazer nós mesmos o mundo em que vivemos. Como dizem os wobblies, do sindicato Industrial Workers of the World, “a ação direta dá satisfação”.
O uso prático da teoria dos privilégios está dentro dos grupos de ativismo que utilizam a ação direta. A ideia da “interseccionalidade” foi desenvolvida originalmente não para dar subsídios a “Olimpíadas da opressão”, uma competição em que a disputa é para ver quem está pior, mas para estimular a solidariedade dentro de cada movimento, tendo atenção às necessidades de movimentos interseccionais específicos dentro deles e evitar que essas opressões sejam usadas por terceiros para criar divisões. O movimento trabalhador deve reconhecer os problemas interseccionais das mulheres ou de trabalhadores minoritários para evitar que os inimigos explorem as divisões dentro do movimento (como fizeram, por exemplo, os grandes agricultores, que dividiram o movimento de agricultores arrendatários no sul dos EUA nos anos 1930 em linhas raciais com suas táticas de infiltração). O movimento feminista deve prestar atenção especificamente às necessidades das mulheres negras, às mulheres trabalhadores, às trabalhadoras do sexo e mulheres transgênero para evitar que elas sejam excluídas de um movimento dominado por profissionais brancas de classe média-alta, como (novamente) Mayer e Sandberg.
Assim, as teorias do privilégio e da interseccionalidade não são “políticas de identidade” que minam a efetividade do ativismo pela justiça social. São, na verdade, a cura para esse ativismo.
Traduzido para o português por Erick Vasconcelos.