Karl Jaspers cunhou a expressão “Era Axial” para descrever deslocamento disseminado e fundamental em valores éticos que ocorreu em certo número de sociedades em meados do primeiro milênio antes da era comum – BCE. Incluiu a ascensão da filosofia grega, o budismo, o zoroastrismo e o movimento profético de Judá e Israel. Todos esses desdobramentos foram caracterizados por deslocamento de valores aristocráticos para valores democráticos e universais que se aplicavam igualmente a todos os seres humanos, independentemente de condição social.
Essencialmente imbricou-se com o que Nietzsche chamou de “revolta dos escravos na moral” em A Genealogia da Moral. Para Nietzsche, a essência dessa “revolta dos escravos” era um deslocamento de valores baseados em “Alto” e “Baixo” ou “Bom” e “Mau” (com “bom” sendo definido em grande medida em termos de valores aristocráticos) para valores baseados em “Bem” e “Mal” (com tanto bem quanto mal constituindo valores universais de justiça por meio dos quais o alto poderia ser julgado por seu tratamento do baixo).
Esse câmbio foi, em muitos casos, acompanhado de mudança na visão do pós-vida, tipificada pela que ocorreu internamente ao movimento profético judaico. No antigo modo de entender, para a vasta maioria dos seres humanos, o pós-vida era sinônimo de jazigo (por exemplo, o hebraico Sheol e o grego Hades), “terra de pó e trevas” nas palavras da Epopeia de Gilgamesh, em que as almas humanas sobreviviam apenas como tênues sombras, sem memória de suas vidas na Terra. O Paraíso era habitação apenas dos deuses bem-aventurados, acompanhados — talvez — de um punhado de seres humanos que haviam de algum modo obtido o privilégio de residir com os deuses graças a extraordinário feito de heroísmo ou a renome. Em outras palavras, o pós-vida estava reservado exclusivamente para os Altos. As religiões da Era Axial, por outro lado, assumiram visão muito mais democrática do pós-vida. Em lugar do Paraíso e do Hades, havia Céu e Inferno — lugares de recompensa e punição, respectivamente — e à raça humana inteira seria atribuído um ou o outro depois da morte, com base não em condição social ou padrões aristocráticos de heroísmo, e sim no caráter moral.
Tanto a Era Axial quanto a “revolta dos escravos na moral” coincidem em certa medida com transição de fase, no esquema de Eric Voegelin (apresentado na série Ordem e História, em diversos volumes), de civilizações cosmológicas para morais universais.
No esquema de Voegelin, foram civilizações cosmológicas as de Mesopotâmia e Egito, China e Mesoamérica. As morais universais que as sucederam — filosofia grega e profetas pós-exílio — foram em grande parte as mesmas que os exemplos típicos da Era Axial de Jaspers.
A moral da civilização cosmológica é autoritária: “como acima, assim é abaixo.” A organização da autoridade hierárquica na terra — a ordem do rei, sacerdotes e nobres — é espelho da ordem no Céu (o panteão dos deuses sob algum deus principal). E, como observado por Voegelin, as religiões ou ideologias universais tendem a estar associadas à ideia de história. As civilizações cosmológicas são estáticas ou cíclicas, com a ordem humana espelhando a ordem cósmica de estações recorrentes.
Em particular o movimento profético judaico, e a escola deuteronômica de história que editou os livros de Deuteronômio até Reis em sua forma final, via Israel como tendo sido chamado, “de entre as nações,” deixando as “panelas de carne do Egito,” para relacionamento especial com um Deus transcendente. Para ele a história era processo linear, em relação a um Deus transcendente, culminando em certo tipo de plenitude/realização.
A ideologia real davídica da monarquia inicial, encontrada em sua forma a mais pura nos Salmos, é sistema cosmológico clássico, com simbolismo comparável ao do de outras sociedades no crescente fértil. O primeiro deus derrota o caos primevo (representado por serpente, dragão, ou águas), é progenitor de um panteão de deuses, funda dinastia celeste, e cria o universo e a humanidade. Então o reinado desce para entre os homens, reproduzindo a ordem celeste na terra. E a partir desse ponto a ordem humana, uma vez estabelecida, segue curso estático de perfeição modelada segundo a ordem celeste.
A ideologia davídica, em grande medida, constituiu exercício de reimposição de estrutura convencional à religião libertária dos “zomianos,” que era religião igualitária de servos e escravos fugidos. Os temas mais antigos, ainda preservados em pequenas unidades em formas tais como o ano do jubileu da lei mosaica, ofereceram matéria-prima para o movimento profético posterior, que — coincidindo com o Perído Axial — justapôs uma religião moral universalista contrastante com a mais antiga interpretação davídica do judaísmo. Daí a condenação do cerco da terra pelos profetas, como Isaías nesta passagem: “Ai dos que ajuntam casa a casa, reunem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra!” (Isaías 5:8)
Os projetas hebreus do período de exílio e pós-exílio — um dos principais exemplos de Jaspers do movimento Axial, juntamente com a filosofia grega, o zoroastrismo e o budismo — substituíram essa ideologia cosmológica pela ideia de história humana como algo linear, com começo e fim, algo sujeito ao tempo sob o transcendente governo de Deus e prosseguindo rumo a objetivo final. Os restos sobreviventes da mais antiga civilização cosmológica apenas se mostram aqui e ali, numa Bíblia quase totalmente revisada por redatores do movimento profético.
A religião cosmológica da monarquia israelita inicial, do mesmo modo que a civilização vizinha da Mesopotâmia, era completamente aristocrática. Havia um Paraíso, habitado por Iavé e seu panteão, e — na melhor das hipóteses — punhado de reis e heróis como Enoque e Elias, que foram levados vivos para o Paraíso. E havia então o Sheol, para onde toda a raça humana estava destinada a ir. Em lugar desses a religião profética criou o Céu e o Inferno, ambos abertos a ambos, os altos e os baixos, dependendo da aderência deles a normas éticas.
A revolta dos escravos em moral estava frequentemente associada a cultos de deuses moribundos (Dumuzi, Osíris e Dionísios, bem coo Cristo) onde o deus descia assumindo forma humana, experimentava o sofrimento da humanidade, morria morte horrível e ressuscitava — e em o fazendo redimia os pobres e fracos e os elevava até seu nível. A apoteose desse deus moribundo igualitário foi “Cristo, e Cristo crucificado,” com o “escândalo da Cruz” justaposto em contraste com os deuses do Olimpo — que se espojavam em ócio, fornicavam, e bebiam néctar.
Quando conjugada com a ideia de história, como na tradição profética judaica e no cristianismo, a ideia messiânica levou a visões apocalípticas nas quais a história culminava em Novo Céu e Nova Terra, transformados para refletir ideais transcendentes de justiça.
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