Comumente olhamos para uma ideologia da perspectiva da classe dominante, como ferramenta de legitimação. A ideologia, entanto, serve igualmente aos propósitos dos dominados — como guia para ação no interesse de sua classe.
As ideologias respectivamente dos dominantes e dos dominados tendem a ser interdependentes. A ideologia oficial legitimadora de uma classe dominante apela para padrões de legitimidade que têm ressonância cultural junto aos dominados. Ao mesmo tempo, ideologias de resistência amiúde usam os próprios padrões de legitimidade das classes dominantes como armas contra tais classes.
Este último fenômeno, a contestação ou inversão de símbolos da ideologia oficial e seu uso como ferramenta de resistência, é o tema do presente paper.
James Scott: Espaços Não Estatais e Cultura Zomiana
A Arte de Não Ser Governado: História Anarquista das Terras Altas do Sudeste Asiático, de James Scott, trata Zomia — as terras altas do sudeste asiático — como exemplo paradigmático do que ele chama de “espaços não estatais.”
O que Scott chama de “espaços estatais e espaços não estatais” é o tema central de A Arte de Não Ser Governado. Espaços estatais, escreveu Scott em Do Ver Como Estado, são regiões geográficas com alta densidade populacional e alta densidade de agricultura de grãos, “produzindo excesso de grãos… e trabalho de relativamente fácil apropriação pelo estado.” As condições de espaços não estatais são exatamente o inverso, “limitando assim severamente as possibilidades de apropriação estatal consistente.” [1]
Essa poderia ter servido como a sentença de tópico para o livro seguinte dele, A Arte de Não Ser Governado. De fato, de acordo com Scott, [2] Do Ver Como Estado foi na verdade uma ramificação da pesquisa que por fim levou a A Arte de Não Ser Governado. Sua linha original de investigação visava a “entender por que o estado sempre pareceu ser inimigo das ‘pessoas que se deslocam’….” Em seus estudos acerca de “as perenes tensões entre povos moventes, de coivara, das colinas, de um lado, e reinos do vale, de arrozais inundados, do outro,” juntamente com nômades variados e escravos fugidos, Scott foi desviado para um estudo da legibilidade como motivo das políticas de sedentarização do estado. Havendo desenvolvido esse tópico, ele retornou a seu foco original em A Arte de Não Ser Governado.
No segundo livro, Scott vistoria as populações de “Zomia,” as áreas mais altas que permeiam os países do Sudeste Asiático, as quais ficam, em grande parte, fora do alcance dos governos de lá. Ele sugere pontos em comum entre os zomianos e pessoas de áreas não estatais em todo o mundo, povos de terras altas e de terras onde começa o sertão tais como os cossacos, montanheses da Escócia e “caipiras apalachianos,” povos nômades como os ciganos e os itinerantes ingleses e irlandeses, e comunidades de escravos fugidos em regiões pantanosas inacessíveis do sul dos Estados Unidos.
Os estados tentam maximizar a apropriabilidade de plantações e trabalho, estabelecendo espaço estatal de modo a “garantir ao governante substancial e fidedigno excedente de mão de obra e grãos pelo menor custo…” Isso é conseguido por concentração geográfica da população e pelo uso de formas de cultivo concentradas, de alto valor, para o fito de minimização do custo de governar a área, bem como minimização dos custos de transação da apropriação do trabalho e da produção. [3] Os espaços estatais tendem a abranger grandes “áreas cerne” de produção de grãos altamente concentrada a “poucos dias de caminhada do centro da corte,” não necessariamente contíguas ao centro mas pelo menos “relativamente acessíveis a autoridades e soldados oriundos do centro via rotas de comércio ou vias navegáveis.” [4] Áreas governáveis são principalmente áreas de produção agrícola de alta densidade ligadas ou por terreno plano ou por cursos de água. [5]
O espaço não estatal é inversão direta do espaço estatal: é “repelidor do estado,” isto é, “representa um cenário agroecológico singularmente desfavorável a estratégias dos estados referentes a mão de obra e acumulação de grãos. Os estados “hesitarão em incorporar tais áreas, na medida em que o retorno, em mão de obra e grãos, tenderá a ser menor do que os custos administrativos e militares de apropriação.” [6]
Quanto maior a dispersão das plantações, mais difícil será coletá-las, do mesmo modo que uma população dispersa é mais difícil de açambarcar. Na medida em que tais plantações sejam parte do elenco do coivarador, nesse mesmo grau elas se revelarão fiscalmente estéreis para estados e invasores e serão consideradas “não valerem a pena” ou, em outras palavras, espaço não estatal. [7]
Os espaços não estatais beneficiam-se de diversas formas de “fricção” que aumentam os custos de transação de apropriação do trabalho e da produção, e de estender o alcance do braço compelidor do estado até tais regiões. Essas formas de fricção incluem a fricção da distância [8] (que equivale a um imposto de distância onerador do controle centralizado), a fricção das características físicas do terreno ou da altitude, e a fricção das condições metereológicas sazonais. [9] Com relação a esta última, por exemplo, a população poderá “esperar as chuvas, quando as linhas de suprimento entrem em colapso (ou sejam mais fáceis de interromper) e a guarnição se veja na iminência de inanição ou retirada.” [10]
Em Zomia, como Scott descreve:
Praticamente tudo acerca dos modos de sustento dessas pessoas, sua organização social, suas ideologias, …pode ser entendido como posicionamentos estratégicos visantes a manter o estado à distância. Sua dispersão física em terreno escabroso, sua mobilidade, suas práticas de plantação, sua estrutura de relações de sangue, suas identidades étnicas flexíveis, e sua devoção a líderes proféticos milenários servem na verdade para impedir a incorporação em estados e a impedir que os estados subitamente se instalem entre elas. [11]
Para impedir tributos, trabalho forçado e conscrição militar, elas praticavam “agricultura de escape: formas de cultivo projetadas para impedir apropriação pelo estado.” Sua estrutura social, analogamente, “estava projetada para favorecer dispersão e autonomia e impedir subordinação política.” [12]
Zomia é um dos espaços não estatais ao redor do mundo — quer sociedades territoriais, quer nômades — povoados por secessionistas votantes por meio de abandono da mesa de negociação: aí se incluem os cossacos, ciganos, itinerantes ingleses e irlandeses, e as “utopias piratas” e os “isolados trirraciais” estadunidenses descritos por Hakim Bey.
Esta última categoria, infelizmente, obteve seu nome a partir do movimento eugenista estadunidense da virada do século 20. Eles descendem de escravos pretos fugidos, servos brancos contratados e índios, que constituíram comunidades autônomas em brejais e outras áreas rurais esparsamente habitadas. Onde tribos nativas tinham número suficiente, frequentemente retiveram sua estrutura tribal e absorveram pretos e brancos fugidos. Em outros lugares, amalgaram-se, formando novas identidades étnicas. Alguns dos grupos recentemente amalgamados criaram identidades sintéticas como tribos indígenas ou asseveraram terem sido adotados. [13] Algo da espécie provavelmente ocorreu, como veremos adiante, na “retribalização” da população canaanita camponesa de Israel e na ancestralidade epônima mítica que adotou dos filhos de Jacó.
Notes:
1 Scott, Do Ver Como Estado, p. 186.
2 Ibid ., pp. 1-2.
3 James C. Scott, A Arte de Não Ser Governado: História Anarquista das Terras Altas do Sudeste Asiático (New Haven and London: Yale University Press, 2009), pp. 40-41.
4 Ibid., p. 53.
5 Ibid., p. 58.
6 Ibid., p. 178.
7 Ibid., p. 196.
8 Ibid., p. 51.
9 Ibid., p. 61.
10 Ibid., p. 63.
11 Ibid., x .
12 Ibid., p. 23.