Este paper considera, mais especificamente, a ideologia liberatória ou não estatal como arma contra o poder e a exploração. Como descrito por Scott, a religião zomiana frequentemente abebera-se do mesmo repositório de mitos e de temas culturais que a religião dominante em espaços estatais. Ela, porém, os retoma — em clássico exemplo de “usar as ferramentas do senhor para destruir completamente a casa do senhor” — invertendo a religião do estado e tornando-a o oposto do que era. Scott, no contexto de sua discussão das “grandes tradições” versus “pequenas tradições,” escreve: “Nesse ‘contraponto à melodia principal,’ como descreveu Wertheim, muitos dos valores centrais da cultura da elite são simbolicamente rejeitados ou tornados o oposto do que eram antes.”44 A religião das ordens mais baixas frequentemente reflete “a apropriação do simbolismo religioso a serviço dos interesses de classe…. O sincretismo da pequena tradição… representa um retrabalho, uma apropriação seletiva, daqueles elementos de uma doutrina religiosa que responde às necessidades de uma classe subordinada.” [45]
Scott discorda especialmente da assunção de que a hegemonia ideológica necessariamente conduz a perda da condição de agente por parte de grupos subordinados — “de que a incorporação ideológica de grupos
subordinados necessariamente vá diminuir o conflito social.”
E, sem embargo, sabemos que qualquer ideologia que reivindique hegemonia precisará, com efeito, fazer promessas aos grupos subordinados mediante explicar-lhes por que uma ordem social específica atende também aos melhores interesses deles. Uma vez tais promessas sejam ampliadas, está aberto o caminho para o conflito social. Como devem essa promessas serem entendidas, foram cumpridas, foram feitas de boa fé, quem as fará cumprir? Sem estendermo-nos, é razoavelmente claro que alguns dos mais notáveis episódios de conflito violento ocorreram entre uma elite dominante e massa comum de subordinados buscando objetivos que poderiam, em princípio, ser acomodados internamente à ordem social prevalecente. [46]
Em realidade a grande massa de demandas populares, nos períodos de radicalização imediatamente precedentes a revoluções, tem sido, tipicamente, reformista. As comissões de fábrica que surgiram espontaneamente na Rússia no início de 1917 estavam esmagadoramente preocupadas com salários, horas, acomodações tais como instalação de banheiros, procedimentos de agravo etc. Isso, porém, não impediu que elas evoluíssem rapidamente para tornarem-se ferramentas de autogerência direta, à medida que a crise progredia.
O ponto é simplesmente que as classes subordinadas na base do que historicamente chamamos de movimentos revolucionários tipicamente perseguem objetivos bem inseridos no entendimento que têm da ideologia dominante. Sujeitos “falsamente conscientes” são bastante capazes, parece, de deflagrar ação revolucionária. [47]
Scott interpreta a análise de Gramsci da hegemonia como funcionando “precipuamente em nível do pensamento enquanto distinto do nível da ação.”
A anomalia, que se espera o partido revolucionário e sua intelligentsia resolvam, é que a classe trabalhadora, sob o capitalismo, está envolvida em lutas concretas com implicações revolucionárias mas, por causa de estar escravizada ao pensamento social hegemônico, é incapaz de tirar conclusões revolucionárias de suas ações. É essa consciência dominada, assevera Gramsci, que tem impedido a classe trabalhadora de derivar as consequências radicais inerentes a grande parte de sua ação:
O homem ativo da massa tem uma atividade prática, mas não tem consciência teórica clara de sua atividade prática…. Sua consciência teórica pode com efeito estar historicamente em oposição a sua atividade. Quase é possível dizer que ele tem duas consciências teóricas (ou uma consciência contraditória): uma que é implícita a sua atividade e que em realidade une-o a todos os seus companheiros trabalhadores na transformação prática do mundo real; e uma, superficialmente explícita ou verbal, que ele herdou do passado e absorveu não criticamente. Essa concepção verbal, contudo, não é sem consequência… o estado contraditório de consciência [amiúde] não permite qualquer ação, qualquer decisão, ou qualquer escolha, e produz condição de passividade moral e política.
Já exploramos, contudo, algo da capacidade imaginativa de grupos subordinados para reverter ou negar ideologias dominantes. Tão comum é esse padrão que se torna plausível considerá-lo parte essencial do equipamento religiopolítico de grupos historicamente em circunstâncias desfavoráveis. Sendo as outras coisas iguais, é portanto mais exato considerar as classes subordinadas menos restringidas no nível de pensamento e ideologia, visto que elas podem, em lugares isolados, falar com relativa segurança, e mais restringidas no nível da ação e da luta política, onde o exercício cotidiano do poder limita agudamente as opções para ela disponíveis. Para dizer de modo cru, será ordinariamente suicídio servos porem-se a caminho para assassinar seus senhores e extinguir o regime senhorial; é, porém, plausível eles imaginarem e falarem acerca de tais aspirações desde que sejam discretos ao fazê-lo. [48]
A despeito dos excessos retóricos de Orwell no tocante à Décima-Primeira Edição do Dicionário da Novilíngua no 1984, é impossível desbastar a língua de conceitos de maneira a tornar a classe subordinada incapaz de formular críticas a uma ideologia dominante. Conceitos são demasiadamente facilmente adaptáveis.
As ideologias oficiais podem, na verdade, muito facilmente ser subvertidas e tornadas em armas de oposição radical à ordem social existente. Bom exemplo é a crença popular russa no Tsar-Libertador, que salvaria seu povo da opressão. Na forma padrão do mito, o bom Tsar foi mantido cativo por conselheiros e autoridades malévolos, que o mantiveram em ignorância do verdadeiro sofrimento de seu povo. Por vezes o mito foi tão longe a ponto de postular que o trono havia sido usurpado por um falso Tsar. De qualquer modo, o Pequeno Pai contornou o cativeiro do regime injusto e viajou disfarçado como peregrino entre seu povo, onde testemunhou em primeira mão seu sofrimento nas mãos de autoridades e arrendadores malvados. Num ponto clímax, o Pequeno Pai revela-se como o Tsar, reclama o trono, pune seus maléficos conselheiros, e institui justiça para os camponeses. Esse mito recorrente esteve no cerne dos principais levantes de servos na Rússia, com os camponeses ou resistindo a aluguéis e a corveias em nome de um ucasse do Pequeno Pai que havia sido suprimido por autoridades malévolas, ou levantando-se em apoio a pretendente que asseverava ser o verdadeiro Tsar. Tão tardiamente quanto em 1902, rebeldes ucranianos defenderam-se perante um magistrado mediante afirmarem agir em obediência ucasse do Tsar que autorizava-os a requisição de grãos da pequena nobreza. [49]
Numa espécie de jiu-jitsu simbólico, mito aparentemente conservador aconselhador de passividade torna-se base para resistência aberta e rebelião que é, por sua vez, publicamente justificada por fiel lealdade ao monarca!… Como conclui Field, “Ingênuos ou não, os camponeses professavam sua fé no Tsar em formas, e apenas naquelas formas, que correspondiam a seus interesses. Líderes camponeses, descobrindo que o mito estava pronto para dar vazão a suas expressões folclóricas, usaram-no para excitar, galvanizar e unificar outros camponeses.” [50]
Populações dominadas podem desafiar a ideologia hegemônica com uma contraideologia por um expediente tão simples quanto inverter-lhe o sinal. Scott objeta à assunção de que uma ideologia hegemônica, mediante suprimir o conhecimento de outros arranjos sociais possíveis, “normaliza” um sistema existente de poder e torna sua substituição inimaginável.
É… equivocado ao assumir que a ausência de conhecimento real de arranjos sociais alternativos produz automaticamente a naturalização do presente, por mais odioso que o presente possa ser. Consideremos dois pequenos feitos da imaginação que incontável número de grupos subordinados tem realizado historicamente. Primeiro, embora o servo, o escravo, e o intocável possam ter dificuldade e imaginar outros arranjos que não a servidão, a escravatura, e o sistema de castas, eles certamente não terão dificuldade em imaginar uma reversão total da distribuição existente de status e recompensas. O tema milenário de um mundo virado de cabeça para baixo, um mundo no qual os últimos serão os primeiros e os primeiros os últimos, pode ser encontrado em praticamente toda grande tradição cultura na qual desigualdades de poder, de riqueza e de status tenham sido pronunciadas…. Essas transcrições coletivas ocultas do vida de fantasia de grupos subordinados não são meramente exercícios abstratos. Estão incrustadas… em inumeráveis práticas rituais (por exemplo, o carnaval em países católicos, a Celebração de Krishna na Índia, a Saturnália na Roma clássica, o festival da água no Sudeste Asiático budista), e têm proporcionado a base ideológica de muitas revoltas.
O segundo feito histórico da imaginação popular é negar a existência da ordem social. Sem terem jamais colocado pé fora de uma sociedade estratificada, grupos subordinados podem ter, e têm, imaginado a ausência das distinções que consideram tão errôneas. A velha adorável cantiga que nos vem da Revolta dos Camponeses Ingleses de 1381, “Quando Adão rebuscava e Eva fiava, quem então era o gentil-homem,” imaginava um mundo sem aristocratas ou pequena nobreza. No século quinze os Taboritas previram tanto igualdade radical quanto a teoria do valor-trabalho: “Príncipes, tanto eclesiásticos quanto seculares, e condes e cavaleiros andantes deveriam possuir apenas o que as pessoas comuns possuem, e então todos teriam o suficiente. Tempo virá quando príncipes e lordes trabalharão por seu pão de cada dia”…. A maior parte das crenças utópicas tradicionais pode, com efeito, ser entendida como negação mais ou menos sistemática de um padrão existente de exploração e da degradação de status tal como vivida por grupos subordinados. Se o campesinato é acossado por autoridades que coletam tributos, por lordes que coletam produção agrícola e impostos em trabalho, por sacerdotes que coletam dízimos, e por colheitas magras, a utopia dele provavelmente visionará uma vida sem tributos e taxas e dízimos, e com natureza abundantes e capaz de produzir por si própria. Pensamentos utópicos desse tipo foram usualmente ventilados em formas disfarçadas ou alegóricas, em parte porque sua manifestação descerrada seria considerada revolucionária. O que está além de dúvida é que crenças e expectativas milenárias amiúde proporcionaram, antes da época moderna, conjunto extremamente importante de ideias mobilizadoras subjacentes a rebeliões de larga escala, quando estas ocorreram. [51]
Em sociedades de classe ao longo da história — mesmo quando tais sociedades relativamente estáveis — a ideia de um “mundo virado de cabeça para baixo” tem persistido entre o campesinato. O ano do jubileu originou-se como prática de sociedade comunal camponesa com sistema de Campo Aberto, mas persistiu (muito como as Boas Leis do Rei Alfredo e o mito do Jugo Normando) como base de uma ideologia insurreicionista muito depois de ter cessado de ter qualquer efeito jurídico sobre as práticas correntes das classes proprietárias de terras.
Essa inversão estava no âmago de coisas tais como o Dia dos Parvos/Dia da Mentira (algo muito parecido com ele era provavelmente o ancestral da Comédia Grega). E a inversão, uma vez concebida como fenômeno ocasional, podia ser extrapolada para tornar-se a base permanente da sociedade:
…a parvoíce tinha função na sociedade medieval. Havia uma convenção segundo a qual em certas ocasiões determinadas — Terça-Feira da Absolvição Mediante Confissão e Penitência, as Celebrações de Dignificação dos Parvos, o Dia de Todos os Parvos e outras — a hierarquia social e as the social hierarchy e as exigências aceitas de comportamento social respeitável podiam ser viradas do avesso. Era uma válvula de segurança: tensões sociais eram liberadas pela inversão social ocasional; a ordem social parecia talvez nessa medida muito mais tolerável. O que foi novo no século dezessete foi a ideia de que o mundo poderia ser virado do avesso permanentemente: de que o mundo sonhado da Terra de Cockayne ou o reino dos céus poderia ser atingível na terra já. [52]
Para nossos propósitos, o mais interessante acerca do carnaval é a maneira pela qual ele permite que certas coisas sejam ditas, certas formas de poder social passíveis de serem exercidas que são abafadas ou suprimidas fora dessa esfera ritual….
…Muito da agressão social interna ao carnaval está dirigido contra figuras dominantes, se não por outra razão pelo fato de tais figuras serem, em virtude de seu poder, praticamente imunes a crítica aberta em outras ocasiões…. Instituições, tanto quanto pessoas, são postas sob ataque. A igreja, em particular, tornou-se parte fundamental do escárnio do carnaval. Com efeito, todo rito sagrado concebível ganhou sua contraparte numa paródia do carnaval…. Instaurou-se uma espécie de diálogo explícito, devidamente elusivo, entre uma religião popular heterodoxa e uma hieraquia oficial da piedade….
Como se poderia razoavelmente esperar, antagonismos de classe e políticos puderam também ser publicamente expressados por meio de técnicas de carnaval. A descrição de David Gilmore acerca de como a crescente animosiade, na Andaluzia do século vinte, entre trabalhadores agrícolas e proprietários de terras, afetou o carnaval é instrutiva. Inicialmente, ambas as classes participavam do carnaval, com os donos de terras tolerando os versos ridícularizadores e satíricos cantados para eles. À medida que as condições agrárias foram piorando, o abuso e as ameças levaram os proprietários de terras a se retirarem e a assistir ao carnaval das sacadas. Já há algum tempo os proprietários de terras com efeito saem da cidade enquanto dura o carnaval, abandonando este a seus antagonistas. [53]
Os estruturalistas tendem a negligenciar coisas tais como o carnaval considerando-as “válvulas de segurança” que preservam o sistema mediante desviar o ressentimento popular para exibições simbólicas sem alterar a estrutura real de poder. James Scott devota considerável porção de esforço para contrapor-se à argumentação segundo a qual “o discurso de bastidores dos sem poder é pose vazia ou, pior, sucedâneo a resistência real. [54]
Na verdade, porém, até o carnaval foi operacionalizado como arma para luta real em tempos de tensão de classe intensificada, como o exemplo acima de Andaluzia indica. Na verdade, seria um contrassenso tais instituições não serem impelidas em direção revolucionária em épocas de descontentamento fora do comum.
O carnaval, em sua estrutura ritual e anonimato, confere lugar privilegiado a expressão verbal e agressão normalmente suprimidas. Ele foi, em muitas sociedades, praticamente a única ocasião, no ano, em que as classes mais baixas tinham permissão para reunir-se em número sem precedentes por trás de máscaras e fazer gestos ameaçadores para aqueles que governavam na vida diária. Dada essa oportunidade sem igual e o simbolismo do mundo virado ao contrário associado ao carnaval, não é de surpreender que ele amiúde desbordasse para conflito violento. E se alguém estivesse, efetivamente, planejando rebelião ou protesto, o encobrimento legítimo de reunião anônima proporcionado pelo carnaval podia sugeri-lo como como lugar promissor…. Eis porque rebeldes reais imitam o carnaval — vestem-se de mulher ou mascaram-se quando quebrando máquinas ou fazendo exigências políticas; suas ameaças usam a figura e o simbolismo do carnaval; extorquem dinheiro e concessões de emprego à maneira das multidões à espera de dádivas durante o carnaval…. [55]
Norman Solomon, em O Problema no caso de Dilbert, desqualificou a popular tira cômica de Scott Adams argumentando que ela permite que funcionários que desempenham tarefas sem sentido desabafem ridicularizando a gerência intermediária, deixando porém, nas mais das vezes, de tratar da natureza do poder corporativo.
Contudo, Dilbert é em grande parte uma inversão ou recuperação da ideologia corporativa oficial, com os funcionários dedicados a tarefas sem sentido usando a própria retórica legitimadora da “eficiência” contra aquela. Qualquer classe dominante fica limitada e é tornada vulnerável por sua escolha de retórica legitimadora.
James Scott acha implausível a tese da válvula de segurança, visto ela basear-se na assunção de que a expressão segura da raiva por meio da fantasia é substituta satisfatória da “agressão direta contra o objeto da frustração.” Na verdade, porém, as pessoas que “são injustamente contrariadas experimentam pouca ou nenhuma redução do nível de sua frustração e raiva, a menos que consigam causar dano diretamente ao agente frustrador.” Mais ainda, o permitirem-se essa expressão da fantasia pode, com efeito, induzir as pessoas a anseio pela coisa real.“…[H]á muita evidência experimental de que simulação e fantasia agressivas fazem aumentar, em vez de decrescer, a probabilidade de agressão real.” Faz sentido pensar nas assim chamadas expressões “válvula de segurança” de raiva como preparações ou ensaios, em vez de substitutas, para a coisa real. é de notar quantas “revoltas de escravos, camponeses e servos começaram precisamente durante rituais sazonais…” [56]
E ideologias de “válvula de segurança” que solapam a legitimidade da ideologia oficial são elas próprias frequentemente usadas para legitimar ação encoberta em desafio à classe dominante: “qualquer argumentação que assuma que dissidência ideológica ou agressão disfarçada funcione como válvula de segurança para debilitar resistência ‘real’ deixa de levar em conta o fato de suprema importância de que tal dissidência ideológica é praticamente sempre expressada em práticas que visam a renegociação inconspícua das relações de poder.” [57]
E o efeito cumulativo de tal resistência individual “reles” poderá vir a redundar em vasta importância estrutural. Scott cita a observação de Milovan Djilas de que “trabalho inferior, lento e improdutivo de milhões de desinteressados… torna-se o desperdício calculável, invisível e gigantesco que nenhum regime comunista tem conseguido impedir.” E, acrescenta Scott, “[c]aça/pesca e ocupação de imóvel ilegais em larga escala podem reestruturar o controle da propriedade.58 Trabalhar vagarosamente ou “trabalhar frugalmente,” historicamente, tem desempenhado papel fundamental na definição do ritmo normal de labor no local de trabalho.
Quando sociedades da colina “vêm a adotar ‘religião de âmbito mundial’ de suas vizinhas do vale, provavelmente fá-lo-ão com grau de heterodoxia e fervor milenário que as elites do vale considerarão mais ameaçador do que tranquilizador.”59 De maneira geral, quando populações de colina partilham religião eminente com espaços estatais nas terras baixas, seu clero tende a ser mais irregular e tendente a formar seitas cismáticas. Além disso, seitas cismáticas dos vales tendiam a ver os vales menos governáveis como lugar de refúgio para escapar de perseguição por parte do establishment religioso oficial.60 “O pluralismo expulso dos vales pode ser encontrado em profusão nas colinas — cacos que nos contam o que os reinos das terras baixas expulsaram ignominiosamente do vale….” [61]
A variedade de hinduísmo praticado nas montanhas Tengger de Java, por exemplo, acabou com o sistema de castas, e preserva forma de sacerdócio hindu que reflete os valores da cultura de igualitarismo e independência em vez do apego das terras baixas a posição social e hierárquica. [62]
O mesmo é verdade de populações em áreas marginais ou não estatais ao redor do mundo.
A frequência com que periferias — montanhas, desertos, florestas densas — têm estado associadas a dissidência religiosa é comum demais para ser negligenciada. Os confins cossacos da Rússia tsarista eram notáveis não apenas por sua estrutura social igualitária como também por serem um bastião dos Antigos Crentes cujas doutrinas desempenharam importante papel em ambas as revoltas Razin e Pugachev de camponeses. A Suíça de longo tempo caracteriza-se por igualitarismo e heterodoxia religiosa. Os Alpes geralmente eram vistos pelo Vaticano como berço de heresia. Os valdenses encontraram refúgio ali e, quando ameaçados de conversão forçada pelo duque de Saboia, em meado século dezesseste, mudaram-se para os vales mais altos. [63]
Quando o Império Romano (e, com ele, a província de África) tornou-se cristianizado, os bérberes também adotaram o cristianismo — mas a versão ariana, ou donatista, dele. Quando o norte da África caiu diante do Califado Islâmico, os bérberes converteram-se ao islã — mas à heresia carijita. O povo das montanhas do Afeganistão, similarmente, adotam a seita xiita duodecimana ou o ismaelismo em vez do sunismo do povo do vale. [64]
O mais importante ponto é que “grande parte da mesma matéria-prima cosmológica” vai para as variantes de uma religião importante partilhada por territórios estatais e não estatais. [65] As religiões dos espaços não estatais incluem “um mimetismo das formas institucionais do estado das terras baixas [que] pode ser remodelado para opor-se às agendas das terras baixas.” [66]
A heterodoxia religiosa e o profetismo com reverberações milenárias são, pelo menos historicamente, tão comuns nas terras baixas e no seio de populações já parte dos estados das terras baixas quanto o são nas colinas. Na verdade… as ideias milenárias em circulação nas colinas são, na maior parte, montadas a partir de fragmentos que foram importados de estados do vale. [67]
Se o tema central da religião do estado ou da classe dominante é legitimidade — sujeitai-vos às autoridades superiores; o governante não brande a espada em vão; como é acima, assim é abaixo; etc. — o tema central da religião em espaços não estatais é exatamente o oposto: os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos; os poderosos serão humilhados; ai dos opressores; etc. Scott refere-se a isso como “[a] difundida ideia de uma reversão das sinas, de um mundo virado de cabeça para baixo….” [68] O milenarismo “representa audacioso contrabando da estrutura ideológica das terras baixas para criar movimentos que visam a tornar inermes ou a destruir os estados dos quais contrabandeada.”
Os povos da colina, em certo sentido, apreenderam quaisquer materiais ideológicos disponíveis para eles para fazerem suas reivindicações e guardarem sua distância dos estados das terras baixas. De início, a matéria-prima ficou confinada a suas próprias lendas e deidades, por um lado e, por outro, às mensagens emancipatórias que conseguiram identificar nas regiões de terras baixas,especialmente o budismo mahayana e o theravada. [69]
Esse fenômeno geral parece também relevante para Israel, a quem dedicamos tanta atenção na introdução, visto que a anficcionia israelita de certo modo tomou o panteon canaanita de El e virou aquela religião aristocrática de cabeça para baixo, atrelando seu próprio sentido a lugares sagrados canaanitas tais como Betel. De acordo com Gottwald, o
surgimento de Israel a partir de um ambiente social canaanita é análogo, sob alguns aspectos, às continuidades e descontinuidades evidentes no surgimento do primeiro cristianismo a partir do protojudaísmo e ao desenvolvimento do protestantismo a partir do catolicismo romano. [70]
A teologia davídica oficial, mais claramente expressa nos Salmos, era essencialmente um retorno à religião cosmológica de outros estados do Oriente Próximo. Como em outras religiões da espécie, havia estreito paralelo entre a ordem celestial e a terreal. A ordem celestial fora estabelecida por El (ou Iavé) derrotando as forças do caos primordial (representadas pela água ou por um dragão), entronizando-se, tornando-se pai de uma dinastia de deuses, e criando o céu e a terra. A isso seguiu-se a criação de uma ordem terrena correspondente à celestial, com a descida da realeza ao gênero humano e o estabelecimento da casa do rei escolhido por El (ou por Iavé) no centro de uma hierarquia humana refletindo diretamente o panteão divino. Representações, em culto, da derrota do Egito e da marcha triunfal para Sião retratavam o tema em termos simbólicos, guardando estreita semelhança com a derrota, por El, da serpente, ou das águas primordiais, — seguidas do estabelecimento da linhagem de Davi (“que não terá fim.”) .71 Consideremos o padrão de muitos dos salmos de Davi, tipificados pelo Salmo 29: 1) O Divino Guerreiro vai à batalha contra o caos; 2) a natureza se convulsiona diante da ira do Guerreiro; 3) o Deus Guerreiro retorna para tornar-se rei dos deuses, e é entronizado na montanha sagrada; 4) o Divino Guerreiro fala a partir do templo, a natureza responde, o céu fertiliza a terra, e os animais têm espasmos parindo. [72]
O surgimento do movimento profético como contrapeso libertador da teologia davídica oficial da monarquia, e seu reprocessamento e o reavivamento de elementos clandestinos persistentes da antiga tradição israelita preservados em Juízes e Reis, imbrica-se em considerável extensão com o Período Axial de Jasper, com a “revolta do escravo na moralidade” de Nietzsche descrita na Genealogia da Moral, e com a transição das religiões cosmológicas para as universais de Voegelin (ver Apêndice). Em lugar de uma ordem terreal estática-cíclica que refletia a ordem do céu (como é acima, assim é abaixo), e realeza terrena que refletia o panteão de Iavé como originalmente concebido, os profetas acreditavam ter sido chamados a um relacionamento linear, histórico, com um Deus transcendente e universal.
Notes:
43 Pyotr Kropotkin, Ajuda Mútua: Fator de Evolução (New York: Doubleday, Page and Company, 1909), pp. 206-207.
44 Scott, “Protesto e Profanação: Revolta Agrária e a Pequena Tradição, Parte I,” Teoria e Sociedade 4 (1977) No. 1, pp.16-17.
45 Scott, “Protesto e Profanação: Revolta Agrária e a Pequena Tradição, Parte II,” Teoria e Sociedade 4 (1977) No. 2, p.226.
46 Scott, Domínio e a Arte da Resistência, p. 77.
47 Ibid., pp. 77-78.
48 Ibid., pp. 90-91.
49 Ibid., pp. 97-98.
50 Ibid., p. 98.
51 Ibid., pp. 80-81.
52 Christopher Hill, O Mundo Virado de Cabeça Para Baixo: Ideias Radicais Durante a Revolução Inglesa (Penguin Books, 1972), pp. 16-17.
53 Scott, Domínio e a Arte de Resistência, pp. 173-174.
54 Ibid., p. 184.
55 Ibid., p. 181.
56 Ibid., pp. 186-187.
57 Ibid., p. 190.
58 Ibid., p. 192.
59 Scott, A Arte de Não Ser Governado, p. 21.
60 Ibid., p. 156.
61 Ibid., p. 157.
62 Ibid., pp.. 134-135.
63 Ibid., p. 157.
64 Ibid., p. 158.
65 Ibid., p. 157.
66 Ibid., p. 289.
67 Ibid., pp. 298-299.
68 Ibid., p. 287.
69 Ibid., p. 322.
70 Gottwald, “As Tribos de Iavé Vistas de Perspectiva Diferente.”
71 Cross, op. cit., pp. 79-80.
72 Ibid., pp. 162-163.