Os libertários tendem a vislumbrar dois mundos: um no qual a propriedade privada funciona de forma razoável e um mundo sem propriedade privada que acaba por implodir. O que eles não percebem com frequência, porém, é que essa dicotomia é condicional. A propriedade privada não é moralmente boa ou meritória em si mesma, mas apenas enquanto for a melhor ferramenta para evitar conflitos dada a realidade de escassez do mundo físico. A propriedade privada é inescapavelmente coercitiva e, por isso, deve ser uma convenção somente onde for absolutamente necessária.
A propriedade privada é uma estrutura coercitiva. Ela não é coercitiva como uma arma apontada para a cabeça de alguém ou como a riqueza que é roubada na forma de impostos, mas no sentido de que ela circunscreve, dita e restringe nossas interações com o mundo físico. A realidade da escassez nos coage a escolher entre a propriedade privada e alternativas muito piores.
Nós estaríamos numa situação muito melhor se não tivéssemos que lidar com a escassez. Não haveria conflitos reais ou potenciais pela posse de bens físicos. Este mundo hipotético — de superabundância, pós-escassez, oferta infinita, reprodutibilidade infinita ou qualquer outro nome — é preferível a ambas as opções apresentadas pelos libertários. A super-abundância também negaria e superaria outros corolários da escassez, como o custo de oportunidade, a oferta e a demanda e, em última análise, a própria ideia de economia. Infelizmente, esse mundo não existe.
Um mundo superabundante existe, porém, em recursos ideais — como ideias, padrões, conceitos, palavras, expressões, informações, conhecimento, etc (ou seja, em produtos da mente). Ao usar uma receita para preparar minha comida, eu não impeço que ninguém mais a utilize. O mesmo é válido para o design de um motor de combustão interna, para o arranjo e para a expressão de palavras de um romance, para as cores e padrões de uma pintura, para as notas e rítmos de uma composição musical e para qualquer outra coisa que exista fora das limitações dos bens físicos.
O fato de que uma oferta superabundante de recursos ideais exista não implica que todos tenham conhecimento infinito. O processo de descoberta converte a ignorância em ciência, mas não têm qualquer efeito sobre a excludabilidade ou sobre a escassez. Quando Pitágoras desenvolveu seu famoso teorema, inicialmente ele era o único a conhecê-lo. Contudo, o fato de que todos os demais o ignoravam não significava que ele era escasso. Todos estavam livres para descobri-lo independentemente ou para aprendê-lo do próprio Pitágoras (se ele o dividisse) e fazer uso dele sem excluir as outras pessoas.
Recursos ideais, é claro, interagem com objetos escassos. Por exemplo, pensamentos são comunicados como arranjos de palavras que são frequentemente escritos ou exibidos através de objetos escassos, como folhas de papel ou telas de computador. Num nível mais abstrato, a escassez de neurônios, tempo e espaço também é relevante.
O modo pelo qual recursos não-escassos interagem com recursos físicos escassos já mudou mudou muito e continua a se modificar. A primeira grande revolução ocorreu com o advento da linguagem escrita. A segunda grande revolução envolvia o abandono dos copistas com a invenção da prensa de Gutenberg. A terceira grande revolução, que todos testemunhamos, é a transformação do impresso para o digital. A “nuvem” efetivamente elimina a escassez relacionada à distribuição de informações.
Vamos pegar a radioterapia como exemplo. Pacientes com câncer podem utilizar a radiação como tratamento, para retirar de seus corpos as células malignas e melhorar suas condições de vida. Contudo, se uma pessoa saudável for exposta à radiação, ou mesmo se a radiação for utilizada numa pessoa doente de maneira imprópria, os resultados podem ser terríveis. Ao invés de promover a cura e o prolongamento da vida, a radiação pode causar sofrimento e induzir a morte.
Como no caso da radiação, a imposição de estruturas de propriedade privada desnecessárias e indiscriminadamente inibe o progresso humano. Onde não há escassez, a necessidade de fazer essa escolha entre as duas alternativas mencionadas acima não existe. Quando escolhemos aplicar a propriedade privada a recursos não-ideais na forma de propriedade intelectual, por exemplo, nós saímos do âmbito da coerção natural (onde elementos incontroláveis do mundo físico exigem que façamos escolhas indesejáveis) e entremos na alçada da coerção artificial (em que humanos coagem outros humanos).
É isso que os libertários com frequência não percebem. Podemos ficar tão afeitos à ideia da propriedade privada que acreditamos ter que criá-la, impô-la ou legislá-la, até mesmo quando desnecessário. A escassez não governa o mundo não-físico e, por isso, é desnecessário, imprudente e tolo impor as estruturas coercitivas da propriedade privada sobre ele. Como diz o antigo adágio, não é necessário consertar o que não está quebrado.
Num mundo superabundante como o Jardim do Éden, o mundo, o espaço, o tempo e as próprias pessoas ainda seriam escassos. Mesmo se eu fosse capaz de ter aquilo que eu quisesse, eu ainda teria as limitações de tempo, do meu corpo físico e do espaço que ele ocupa e de sua própria mortalidade. Essas condições, no entanto, não minam a auto-propriedade nem o argumento de que a propriedade privada seja indesejável. A imortalidade, o espaço ilimitado e o tempo ilimitado parecem ser condições preferíveis ao oposto.
O direito à propriedade privada não é um axioma intuitivo e natural, uma lei eterna divina de todas as interações humanas. Pelo contrário, a propriedade privada evoluiu como o melhor e único método de alocação pacífica de recursos. Com a diminuição das propriedades comuns, esse fato inegável se tornou mais e mais evidente. Embora a propriedade privada seja preferível às alternativas, ela não é inerentemente desejável ou boa. Reconhecer esse fato esclarece e aperfeiçoa a teoria libertária.
Traduzido do inglês para o português por Erick Vasconcelos.