A Inglaterra não é povo livre, porém os pobres que não têm terra têm livre permissão para amanhar e trabalhar as [terras] comuns… – Gerrard Winstanley, 1649
Centro por uma Sociedade sem Estado Paper Nº 13 (Verão/Outono de 2011)
II. Destruição da Comuna Camponesa pelo Estado.
Foi só com a ascensão do estado moderno, perto do fim da Idade Média, que os governos começaram a ter interesse em regulamentar a vida dos indivíduos. O moderno estado centralizado foi confrontado com o problema da opacidade, e passou a concentrar-se, na linguagem de James Scott, numa “tentativa de tornar a sociedade legível, de organizar a população de maneiras que simplificassem as funções clássicas do estado de tributação, conscrição e impedimento de rebelião.”26 Embora o estado tenha sempre tido tais preocupações em maior ou menor grau, só o estado moderno — pelo menos desde o tempo dos romanos — realmente buscou tocar os indivíduos em suas vidas diárias.
Legibilidade é condição para manipulação. Qualquer intervenção substancial do estado na sociedade — vacinar a população, produzir bens, mobilizar trabalhadores, tributar pessoas e o patrimônio delas, conduzir campanhas de alfabetização, conscrever soldados, impor padrões de saneamento, apanhar criminosos, deflagrar instrução escolar universal — requer a invenção de unidades que sejam visíveis…. Quaisquer sejam as unidades sendo manipuladas, elas precisam ser organizadas de maneira a permitir sejam identificadas, observadas, registradas, contadas, agregadas e monitoradas. O grau de conhecimento necessário terá de ser mais ou menos comensurável com a profundidade da interveção. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que quanto maior a manipulação concebida, maior a legibilidade necessária para ela ser implementada.
Foi precisamente esse o fenômeno, de plenitude atingida em meado século dezenove, que Proudhon tinha em mente quando declarou: “Ser governado é ser vigiado, fiscalizado, espionado, regulamentado, doutrinado, admoestado, listado e conferido, avaliado, sopesado, censurado, ordenado…. Ser governado é, em toda operação, transação, movimento, ser notado, registrado, contado, apreçado, advertido, impedido, reformado, retificado, corrigido.”
De outra perspectiva, o que Proudhon estava deplorando era na verdade a grande conquista do estatismo moderno. Vale a pena enfatizar o quanto essa conquista custou esforço e foi vacilante. A maioria dos estados, para falar de maneira ampla, são “mais jovens” do que as sociedades que se propõem a administrar. Os estados, em decorrência, confrontam padrões de estabelecimento, relações sociais e produção, para não mencionar ambiente natural, que evoluíram em grande parte independentemente dos planos do estado. O resultado é normalmente diversidade, complexidade e irrepetibilidade de formas sociais relativamente opacas para o estado, amiúde de propósito….
Se os objetivos do estado forem mínimos, ele poderá não precisar saber muito acerca da sociedade…. Se, entretanto, o estado for ambicioso — se ele desejar extrair tantos grãos e mão de obra quanto puder, sem provocar fome disseminada ou rebelião, se ele quiser criar uma população instruída, treinada e saudável, se ele desejar que todos falem a mesma língua ou adorem o mesmo deus — então terá de tornar-se muito mais sabedor das coisas e muito mais intrometido. [27]
O imperativo de tornar o opaco legível resulta, no caso específico das regras de propriedade da terra, em hostilidade em relação a formas comunais de propriedade regulamentadas como assunto puramente interno de uma vila de acordo com os costumes locais:
…a posse de terras abertas comuns… é menos legível e tributável do que terras comuns fechadas, as quais, por sua vez, são menos legíveis do que a posse privada definitiva, a qual é menos legível do que a posse pelo estado…. Não é coincidência a forma mais legível ou apropriável ser mais facilmente convertida em fonte de rentismo — ou como propriedade privada ou como rentismo de monopólio do estado. [28]
A “privatização” fee-simple e, mais recentemente, a “coletivização” de estilo soviético (isto é, na prática propriedade do estado) são ambas métodos pelos quais o estado destruiu a comuna de vila e superou o problema — da perspectiva do estado — da opacidade dentro dela. Em ambos os casos a comuna de vila, embora bastante legível horizontalmente da perspectiva de seus habitantes, era opaca para o estado.
O modelo fee-simple de propriedade privada, onde tenha existido, tem quase sempre sido cria do estado.
No caso da propriedade comum da terra de fazenda, a imposição de propriedade livre era esclarecedora não tanto para os habitantes locais — a estrutura consuetudinária de direitos havia sido sempre clara o bastante para eles — quanto o era para a autoridade tributária e o especulador de terras. O mapa cadastral de bens de raiz acrescentava inteligência documental ao poderio do estado e assim proporcionava base para a visão sinóptica do estado e para um mercado supralocal de terras. [29]
O título de terra livre e a mensuração estandardizada da terra foram para a tributação central e para o mercado de imóveis o que a moeda do banco central foi para o mercado. [30]
Substituir uma sociedade na qual a maioria das pessoas comuns tem acesso à terra em base consuetudinária por uma sociedade na qual a maioria dessas mesmas pessoas tem de alugar ou comprar terra para poder cultivá-la tem a virtude — da perspectiva do estado e da classe econômica dominante — de forçar o campesinato a entrar na economia de caixa.
A transformação de tudo em produto comprável e vendável, mediante denominar todos os bens e serviços em uma moeda comum, viabiliza o que Tilly chama de “visibilidade [de] uma economia comercial.” Escreve ele: “Numa economia na qual apenas pequena parcela dos bens e serviços é comprada e vendida, prevalecem diversas condições: os coletores de renda não conseguem observar ou avaliar recursos com qualquer exatidão, [e] muitas pessoas têm reivindicações no tocante a qualquer recurso específico (Coerção, Capital e Estados Europeus, pp. 89, 85). [31]
Além disso, forçar os camponeses e trabalhadores a entrar na economia de caixa significa que eles terão de ter uma fonte de renda de caixa para participarem dela, o que significa expansão do mercado de trabalho assalariado.
A explicação funcional de Scott da propriedade individual fee simple soa notavelmente semelhante à descrição de Foucault do “individualismo” implicado no “panoptismo.”
O objetivo fiscal ou administrativo ao qual todos os estados modernos aspiram é medir, codificar e simplificar a posse da terra de maneira muito parecida com aquela pela qual a silvicultura científica reconcebeu a floresta. Acomodar a luxuriante variedade de posse consuetudinária da terra era simplesmente inconcebível. A solução histórica, pelo menos para o estado liberal, tem sido tipicamente a heroica simplificação consistente na posse livre individual. A terra é possuída por um indivíduo jurídico que detém amplos poderes de uso, herança ou venda e cuja propriedade é representada por um título uniforme de propriedade feito cumprir pelas instituições judiciais e policiais do estado…. Num cenário agrário, o panorama adminstrativo é recoberto com um padrão uniforme de terra homogênea, cada pedaço da qual tem uma pessoa legal como proprietária e portanto contribuinte. O quanto muito mais fácil se torna então avaliar tal propriedade – e seu dono – com base na área, na classe de solo, nas culturas que ela normalmente suporta, e na produção assumida, do que desatar o nó da propriedade comum e das formas mistas de posse. [32]
Fim de [II.1]
[26] Scott, Vendo Como um Estado, p. 24.
[27] Ibid., pp. 183-184.
[28] Ibid., pp. 219-220.
[29] Ibid., p. 39.
[30] Ibid., p. 48.
[31] Ibid., pp. 367-368 no. 94.
[32] Ibid., p. 36.