Contra o estado, a favor das terras indígenas

Imagine que a propriedade da sua casa só fosse reconhecida se o Congresso em Brasília aprovasse. Você se sentiria mais seguro? Ou inseguro? Essa realidade, já enfrentada por milhões de brasileiros que vivem em favelas, que têm suas posses sujeitas ao jogo político, será estendida para os indígenas. Ao menos é o que querem alguns congressistas.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 — que seria votada nesta terça (16/12), mas cuja apreciação foi cancelada por conta de protestos de índios — pretende mudar o regime de demarcação de terras indígenas, que dependerão de aprovação dos políticos. Atualmente, o artigo 231 da constituição brasileira afirma que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O parágrafo 1º define que terras são essas: “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”

Logo, a União tem competência para demarcar as terras dos indígenas. Quando se fala em União, leia-se Poder Executivo, por intermédio de órgãos como a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). As diversas etapas do processo de demarcação, definidas no decreto nº 1775/96, podem ser encontradas no site do órgão.

Nenhuma dessas etapas é política. São utilizados critérios técnicos e antropológicos para reconhecer um direito preexistente de posse permanente, assim como a regularização fundiária, urbana ou rural, da terra de qualquer cidadão também utiliza critérios para registrar propriedades já existentes, mas não documentadas. O procedimento indígena é diferenciado por uma questão etnográfica: seu regime de posse da terra é diverso, regulado por usos e costumes peculiares. Mas o mesmo princípio de reconhecer uma propriedade ainda não registrada para fins legais ocorre nos dois casos.

O procedimento é administrativo e só pretende verificar se existe posse da terra e se essa posse é legítima. Caso a posse não seja considerada justa, o Judiciário entra em cena. Mas não há discussão política, somente legal.

PEC 215 quer mudar esse panorama, dando ao Congresso a competência exclusiva para aprovar as demarcações e ratificar as já realizadas. Com uma maioria suficiente, sujeita a intrigas e coalizões de ocasião, as demarcações de terra no Brasil podem ser paralisadas, desconsiderando completamente a situação dos povos indígenas.

Nesse caso, o que aconteceria com as comunidades mundurucus próximas ao Rio Tapajós, onde o governo deseja fazer hidrelétricas que inundarão toda a região? Eles não esperaram para descobrir: com negligência do governo em reconhecer suas terras e sua impressionante eficiência no avanço do projeto hidrelétrico, os mundurucus da comunidade Sawré Muybu autodemarcaram suas terras e agora estão em disputa legal contra o governo brasileiro (incidentalmente, você pode doar para a causa dos mundurucus em sua campanha no Indiegogo).

Os direitos das comunidades às terras comuns são extremamente frágeis no atual regime; ficarão ainda piores se dependerem de políticos sem qualquer obrigação de aprovar demarcações de terras mesmo que com posse comprovada.

Essa é uma violação dos direitos das comunidades indígenas e um retrocesso. A mudança deve fortalecer as propriedades dos índios, não enfraquecê-las. Suas terras devem deixar de ser propriedades do governo brasileiro, com “usufruto” dos indígenas, e passar a ser propriedade comum, como já ocorre nas comunidades quilombolas.

A mudança é para expulsar o estado das terras indígenas. A PEC 215 pretende esmagar os direitos à terra das comunidades. Ela pretende aumentar ainda mais a influência do estado na vida dos índios. Ela deve ser rejeitada.

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